16.9.22

Comunidades imaginadas e desculpas imaginárias

Sofismático o recurso constante ao conceito de «comunidade imaginada» para defender que os povos e os Estados nacionais têm de pedir desculpas por isto ou por aquilo. Coloca-nos vários desafios esse recurso: 

1) Todos os membros da comunidade também têm de se vangloriar (em conjunto) pelo que imaginam ser glorioso no passado da sua nação?

2) A comunidade imaginada hoje é o mesmo que a comunidade imaginada ontem, sendo por isso corresponsáveis? 

3) A comunidade imaginada hoje imagina-se com todo esse passado ou imagina-se com todo o seu presente e fragmentos escolhidos do passado? 

4) A comunidade imaginada imagina-se sob alguma forma de animismo que implique os espíritos dos antepassados nas mentes dos vivos? 

5) Finalmente: a comunidade viva é diversa, mesmo contraditória, como também foi no passado. Deve-se, portanto, concluir que, no presente, a comunidade nacional de um dado país se imagina de forma plural e contraditória. Conclui-se, nesse caso, que não há nenhuma comunidade imaginada, no singular, há vários segmentos sociais imaginando uma comunidade nacional que é diferente da que imaginam os outros grupos. 

Supor que, em nome de uma comunidade imaginada, se deve pedir desculpas, ou nos devemos vangloriar (o mesmo princípio justifica as duas atitudes), pelo passado de uma nação é supor que essa comunidade se imagina da forma e com o perfil com que eu e os meus correligionários a imaginamos. Equivale, portanto, a obrigar o todo a reagir de acordo com o que um setor particular pensa desse todo, ou de como ele se imagina, sem que se pergunte ao conjunto o que pensa do assunto e das interpretações dos vários grupos. Ora a comunidade real, tarde ou cedo, se encarrega de nos mostrar que estamos a imaginá-la abusivamente. É desta cegueira que, em parte, resulta o sentimento de muitos povos hoje que, em percentagem significativa, não se revêm numa atitude política tomada em seu nome sem que se lhes perguntasse nada sobre o assunto - não sendo, porém, solidários com nenhum massacre, que vários deles combateram, denunciaram e tentaram evitar, imaginando assim outra comunidade, a que se orgulha de ter combatido o regime que massacrou e colonizou. Com tais combates é que se redime a História, não com sofísticos pedidos de desculpa.

Transpondo a polémica para um país concreto e não previsto nessas discussões, imagine-se como aplicar o conceito aos ruandeses - e não se esqueçam de lhes perguntarem o que pensam, no seu conjunto e nas suas contraditórias imaginações de nação.


(esta anotação foi suscitada pela intervenção crítica de António Guerreiro, no supl. Ípsilon do jornal Público de 16-9-2022, sobre o texto polémico de Pacheco Pereira relativo a uma hipotética obrigação moral e política de pedir desculpas pelo massacre de Wiriamu)

27.8.22

Clichês, eufemismos e falsificações

 "Vejo que hoje há uma visão quase idílica da escravatura" - onde? escrita ou realizada por quem? 

Não conheço nenhum título nem nenhum pensador, ou escritor, atual, que subscreva "uma visão quase idílica da escravatura". Pelo contrário, alguns aprofundam a visão do tráfico de escravos mostrando como ele envolveu todos, desde a captura e venda na origem dos traficados até à compra nos últimos destinos. Hoje não é mais possível pensarmos que de um lado havia os bons e do outro os maus, como nos tempos da Inquisição ou da Revolução. Mesmo agentes da escravidão viraram por vezes escravos e vice-versa. Idílico dizer isso? Pelo contrário, uma distopia total e que nos mostra que não houve paraísos, idílios ou coisas parecidas na história dos homens.

Outros, ainda poucos e medrosos, demonstram como os processos, as legitimações, os recursos e as artimanhas se globalizavam nesse tráfico. Há muito e não só hoje se conhece também que, tanto escravos quanto senhores (os mais diversos), misturaram referências culturais enriquecendo as suas personalidades e estratégias sem que isso dependesse de ser ou não ser escravo ('coisas' de escravos eram apropriadas por patrões e vice-versa; claro que uns apropriavam como casta ou elite e outros como subjugados, mas todos misturavam traços culturais diversos). Dessas misturas resultaram muitas das culturas nacionais e regionais de hoje. Será isso que chamam de "visão quase idílica"? Nada tem de idílico, foram misturas apesar de, apesar da violenta e desumana realidade da escravidão, no entanto universal e multissecular (idílica esta constatação?). Apesar dela, e, muitas vezes, para torná-la mais eficaz, ou resistir dentro dela, dela-realidade-escravocrata, em sociedades desiguais e cruéis, impiedosas. 

Não interessa o autor da afirmação colocada no começo, dessa ou de outras afirmações idênticas, interessa a expansão dos clichês de cafés ou de twitters, tão nauseabundos quanto os outros e visando maior efeito imediato. 


Outro clichê, equivalente, reporta-se sempre à "cultura dominante". A cultura dominante, hoje, é a que se reporta à "cultura dominante" criticando-a, como se vê pelos prémios e subsídios académicos, pelos títulos e subtítulos de textos de divulgação, manuais de ensino, páginas de cultura de periódicos generalistas, discursos de políticos oportunistas. Desde há várias décadas é assim. E faz-se a crítica denunciando 'um tempo em que', sem se pensar nos espaços em que, como se todos os espaços fossem abarcados por um mesmo tempo social e político. A globalização não conseguiu tanta uniformidade...

À falta de uma realidade à qual nos opormos, em nome da hipercorreção político-partidária, para legitimar nossa ambição de 'subir na vida' e 'ditar regras', evocamos um fantasma do passado e, para não se reparar no anacronismo, metemos na frase a palavra "hoje". Belo truque de mágica para uma mensagem instantânea numa rede social de pessoas apressadas e fúteis. Porém, dizem "hoje", a gente olha para os lados à procura do tal idílio, nada se vê, nada se escuta, só pessoas a dizerem que é assim, "hoje", na "cultura dominante", mas os tais idílicos do tal hoje tornaram-se entidades míticas, sem chão, fantasmas para pagarmos aos feiticeiros... 

Hoje a escravatura chama-se migração ilegal, por exemplo, e os migrantes pagam até para morrer no caminho, pensando em melhorar a sua vida. Mas não vejo os que falam da "visão idílica" de "hoje" sobre a escravatura denunciarem isto e sobretudo nestes termos. Se o fazem é para demolirem e denunciarem mais uma vez o "Ocidente", várias formas de capitalismo, etc., ou seja, mais uns fantasmas, ignorando a origem dos problemas e das migrações, que vem na maioria dos casos de governos autoritários, promotores de profundas desigualdades sociais e sem que o tal 'Ocidente' esteja interessado nessas políticas. Como pode interessar, a quem procura extrair recursos rapidamente e barato, esse tipo de governação? Hoje, no hoje de hoje mesmo, sabe-se, traz mais problemas do que vantagens a governação corrupta, ineficaz para o desenvolvimento e autoritária. Traz, por exemplo, tarde ou cedo, instabilidade, a par de morosidade e despesa excessiva com agentes corruptores e corruptos, quando não com 'missões de paz' ou de guerra. Se uma potência pode extrair recursos em estabilidade, legalmente, porque irá promover guerras, missões de paz, ditaduras, em vez de negociar com governos eleitos e que precisam de se reeleger em liberdade? A liberdade, além de muito melhor para todos, é mais rentável que a opressão. Felizmente nisso sou idílico. É muito mais prático fazer-se acordos ao nível dos governos e pagar a governos eficientes, legais, democráticos. Só quando a instabilidade se torna insuportável (financeiramente) é que as grandes potências aproveitam para criar nichos estritos e provisórios de eficácia rápida na extração de matérias-primas. O que, por exemplo, a Rússia faz hoje descaradamente já e fizeram mais países para tirar petróleo do Iraque depois de 2003.

Hoje a escravatura é também a das mulheres retidas sem documentos em casas de grandes senhores, não do 'Ocidente', no qual os tais senhores e senhoras seriam felizmente denunciados, tarde ou cedo, por uma imprensa livre e combativa, como já sucedeu com uma jovem diplomata indiana em Nova York. Não no 'Ocidente' mítico, mas em vários países árabes reais e não só. Mulheres e homens de casta que trazem mulheres e homens pobres a trabalhar 'com a família', 'pobres' que são 'da família', escravos e escravas da família, 'de casa', recebendo pequenas compensações em troca de si próprios - como há milhares de anos os escravos sabem que se passa. 

Hoje a escravatura é a das pessoas a trabalhar sem salários, ou com salários baixíssimos, ou com salários em atraso crónico, situação frequente por exemplo em Angola. 

Que sentido faz, perante isso, escritores que se dizem empenhados em contribuir para o avanço da humanidade, concentrarem-se em desmontar "uma visão quase idílica da escravatura", pretensamente atual mas que, na verdade, não existe hoje em lado nenhum? Para quê 'atirar no morto'? mmmm...... 'passa a mão pela tua boca'...

Deixem-se de conversas para boi dormir a olhar o palácio... A tal humanidade, a humanidade sem clichês, aflita e real, saudará os vossos esforços quando eles forem de hoje e para melhorar o presente. O resto são 'redes sociais virtuais'... para vender livros e só melhoram o bolso dos oportunistas. 


12.8.22

O perfil da faca de Salman Rushdie

O apelo demagógico, oportunista e confusionista de Putin ao fim de um mundo dominado pelo Ocidente faz apenas parte da encenação justificadora de um apelo mais realista à legitimação de ditaduras que eliminam os seus oponentes fisicamente. Nesse aspeto, Putin e o fascismo islâmico são iguaizinhos a Hitler e seu nazismo, ou a Stalin e seu comunismo. Não por acaso, Putin e os dirigentes iranianos se apoiam mutuamente. Não por acaso, também, o regime iraniano usou dos mesmos argumentos de Putin perante a facada em Salman Rushdie: a culpa é do Ocidente. A culpa é sempre do Ocidente, pelo menos desde o fim do século XIX e, no entanto, os que vieram culpando essa entidade fantasmagórica deram-nos a pior das guerras mundiais, em que para acabar com o suicídio do povo japonês foi preciso largar uma bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki. Assim mesmo, deixem-se de subterfúgios. Os kamikazes suicidavam-se para assegurar que matavam o inimigo já vencedor e tudo em nome, não do imperador, mas do fantasma identitário que ele corporizava, aliado a um tirano alemão que pretendia eliminar sistematicamente judeus, pretos e ciganos. Deram-nos também as piores ditaduras, islâmicas, fundamentalistas, comunistas, nacionalistas (incluindo nazismo, fascismo, putinescas), racistas (incluindo o apartheid na África do Sul e os novos racismos), étnicas (incluindo Ruanda). Se isso é alternativa aos EUA e ao Ocidente, vamos aguentar com eles mesmo assim, que o resto continua sendo pior. 

Atitudes e discursos como os de Khomeini, Putin, Orban, Chavez, Maduro, Ortega, Xi Jinping, Trump, dos radicais islâmicos ou religiosos fanáticos de qualquer parte, dos grupos identitários extremistas, dos ditadores em geral e outros que escondem sê-lo ou ter isso programado, alimentam um ambiente geral de intolerância no qual a morte do adversário se torna até honrosa, conforme o ponto de vista do assassino. Não por acaso as facadas em Salman Rushdie foram comemoradas no Irão e o seu autor considerado um herói (aparentemente, nada oficial, manifestações espontâneas num país onde elas não existem). 

Salman Rushdie, desde 1989 (ano da publicação dos Versos satânicos) ameaçado pelo Irão e pelo radicalismo que ele protagoniza (não é o mesmo em todo o mundo islâmico), foi esfaqueado barbaramente hoje em Nova York. Para o significado do acontecimento, o perfil do autor do crime é pouco relevante. Mas é sintomático ter sido elogiado no Irão como um herói. Como também sintomático o silêncio dos que não protestaram contra o ato, dos que não denunciaram esse ato, incluindo chefes de várias ditaduras. Epistemologias diferentes? Não. A lei da morte é universal. O fim do famigerado 'mundo ocidental', ou do seu domínio, neste momento, significa apenas que não nos iremos da lei da morte libertando. 


22.7.22

Embate português entre populismo xenófobo e social-democracia

 Amigos de várias paragens me enviaram um vídeo no qual André Ventura (Chega, Portugal) e Santos Silva (presidente da AR, Partido Socialista, Portugal) entram num confronto verbal direto por causa da emigração. 

O confronto foi sintomático. 

André Ventura, como sempre, espalhava brasas e atirava barro à parede, muito nervoso sobretudo depois de escutar a primeira resposta do presidente da Assembleia, como se fosse inadmissível contrariarem-no. Ventura bradava contra a emigração legal e ilegal que pesa sobre o bolso dos portugueses, que têm de pagar mais impostos para sustentá-la e são secundarizados para se proteger estrangeiros. É uma reclamação muito usada já em vários países e até nem só de hoje. Mas, para a discussão ter alguma seriedade, o chefe do Chega devia apresentar números concretos. Eu não duvido que não se possa continuar em Portugal a receber indiscriminadamente emigrantes, por rutura da segurança social, mas é indiscriminadamente, o problema está na falta de racionalização dos movimentos migratórios. É que só a partir desses números se poderá definir qual o peso exato da emigração legal e ilegal nas contas do Estado e ver se, como, e até que ponto essas despesas são sustentáveis e que benefícios trazem aos portugueses os emigrantes, em que áreas, que empresas portuguesas precisam de mão de obra. Nesse aspeto, foi bom recentemente Portugal assumir que tinha falta de mão de obra na restauração e na hotelaria, abrindo-se a migrantes para trabalhar nesses ramos.  

Retornando ao tal embate, em seguida, apertado pela resposta amplamente saudada de Santos Silva, André Ventura ainda tentou recuperar terreno, interpelando o presidente da AR portuguesa por ele tomar posição. Porém, como de resto e com inteligência mostrou logo em seguida o deputado-presidente, pedindo aos seus colegas que deixassem André Ventura falar, a sua atuação não era parcial no sentido de prejudicar os direitos de um dos grupos em liça, mas apenas no sentido de manifestar a sua opinião sobre o que estava em jogo. É claro que, mesmo presidindo às sessões, o presidente de uma assembleia de representantes não deixa de ter opiniões próprias e não perde o direito de manifestá-las. O contra-ataque de Ventura à resposta do presidente do plenário não tinha força própria, era mais barro atirado à parede para sujar o nome do adversário, que o superava no duelo retórico.

Augusto Santos Silva, na sua esmerada educação e com tato retórico populista (mas à esquerda), elogiou os emigrantes, afirmou que Portugal devia muito aos emigrantes, mantendo a disputa no vago. Deve o quê, precisamente? Quanto? Desde quando? Certamente que muitos emigrantes contribuíram e contribuem para o bem-estar dos portugueses e vários outros pelo contrário, fornecem alibis para sustentar as acusações do Chega. É precisamente na definição do que vale a pena receber e do que é necessário rejeitar que o debate, com análises sustentadas em dados rigorosos, pode abrir caminho a uma resolução do problema.

Ou seja, para o duelo ganhar seriedade e consequência, penso que o presidente da AR portuguesa devia solicitar ao deputado Ventura que sustentasse em números e análise consequente as suas afirmações. Como candidato a primeiro-ministro e deputado que protesta contra a emigração, deve necessariamente apresentar dados, análises e propostas.

Assim, o 'bate-boca' limitou-se à repetição de posições inconsequentes e já conhecidas. Inconsequentes porque essas afirmações de princípio não resolveram nada, nem podem resolver. Apenas elogiar ou denegrir os emigrantes, nem numa conversa de bêbedos convence ninguém, só anima ou desanima os que já tomaram posição. Havia que chamar a disputa para a discussão da realidade (por exemplo a da Segurança Social entrelaçada com a da emigração). O dirigente do Chega, para além de não sustentar os seus comentários exaltados, também (nessa fala pelo menos) não propôs nada, só protestou. Augusto Santos Silva, por sua vez, não lhe sugeriu que fizesse alguma proposta concreta e a pusesse em discussão de acordo com o regulamento, quero dizer, em momento apropriado. 

Claro que os meus amigos elogiaram a estofada e sábia retórica de Santos Silva, até porque deu mesmo uma resposta inútil mas por cima, com muita elegância, sem nunca baixar o nível do discurso. Eu fiquei no mesmo silêncio que me retém nessas ocasiões. O embate retórico merece uma breve análise e, claramente, com poucas palavras, o presidente da AR o venceu. O debate político manteve a pobreza dos debates político-partidários nas democracias de hoje. 

Penso que assistimos a mais uma esperta fuga à realidade, de ambas as partes. Isso, com a falta de coragem para fazer propostas concretas alicerçadas em análises sérias (que eu não tenho competência nem para imaginar), é que fragiliza as democracias europeias, pluripartidárias e multirraciais. Na parte sua, claro. Sintomaticamente elas se deparam com um eleitorado vacilante, instável, indeciso ou shift, migrante, que se deixa enganar e constrói maiorias desorientado, contraditórias umas das outras, ora populistas, ora costumeiras. Esse eleitorado sintomaticamente, para dizer tudo numa palavra, nem sabe em quem votar. Não porque lhe falte o necessário discernimento, mas porque não vê soluções, ou sequer esboços de resoluções práticas, consequentes. 

Voltamos a um problema repetidamente referido aqui: as democracias não se mostram capazes, hoje, de resolver ou minorar os problemas reais dos países. Isso é que dá força a ditadores como Putin. Que não resolvem mas decidem, avançam e, como calam, reprimem, manipulam votos, eleições, eliminam adversários, parece até que estão a resolver alguma coisa. Principalmente quando precisam de invadir outros países...


21.7.22

Situação política ridícula


O ignorante escarnece do parvo, enquanto o pobre coça a cabeça.

19.5.22

Pensamento único e pensamento livre na política mundial

O panorama da política mundial hoje não nos deve surpreender. É verdade que houve uma pausa de anos até que novas forças políticas concentracionárias emergissem e tomassem o poder em alguns países. Infelizmente, assistimos a uma normalidade. Infelizmente, ela não deixa de ser oportuna, num único sentido: os anos de paz amolecem, por isso uma guerra nos torna mais vigilantes. É, porém, desnecessário, pois os países livres têm na liberdade a revigoração das suas forças e, tarde ou cedo, a moleza havia de ser sobressaltada sem guerras. É, no entanto, uma verdade histórica a da recorrência das guerras. 

Os seres humanos guiam-se por padrões e, por isso mesmo, precisam constantemente de experimentar os padrões, para ver até que ponto eles são funcionais. As discussões públicas e livres acerca de posturas, decisão política ou partidária, estratégias internas e externas, experimentam os padrões que regem as sociedades. Porém, podem fazer perigar um poder autoritário, ou que se aferre a normativos ultrapassados, como é o caso de Putin e de Bolsonaro e foi o de Trump. Quando os padrões são postos em causa e o governante já tem todo o seu poder alicerçado neles, então precisa reprimir qualquer discussão. Se a ditadura avança, os que defendem a liberdade recuam para países livres ou começa a guerra. Porém, mesmo que os oposicionistas sejam pacifistas e só recuem para países livres ou atuem com discrição no interior das ditaduras, a guerra tem de começar, para que a ditadura elimine a oposição seja em que país for. Então começa mesmo a guerra inter-nacional, como se fez a nacional: a princípio surda e indireta (quando o ditador tem pouca força ainda), logo ameaçadora, logo direta, armada, esmagadora. Se as democracias agredidas estiverem preparadas militarmente, reagem com vigor e os ditadores são obrigados a recuar. É certo que, se não forem completamente destruídos, apenas fazem recuos estratégicos, como Erdogan para não sair da OTAN (veremos onde isso vai dar desta vez). Estamos neste ponto: uns fazem recuos estratégicos, outro (Putin) arrasa cidades atrás de cidades ("não ficará pedra sobre pedra") para dizer que não recuou. 

O pensamento que se agarra a um padrão e o define como eterno, imutável (por isso indiscutível), é o pensamento único. O pensamento que se põe à prova é o pensamento livre, que opera e se desenvolve pela diversificação e pela experimentação. 

Ao que assistimos hoje, novamente, é à luta entre as democracias e os protagonistas políticos de um pensamento único, autoritário (seja ele qual for), em combate mortal e contínuo contra a possibilidade de diversificação. Se os seguimos, os nossos padrões estarão controlados à partida e, não sendo passíveis de experimentação, nos fazem correr os riscos das sociedades caducas. As ditaduras recentes, ainda vigorosas, não percebem que assinaram o seu atestado de óbito ao se constituírem em ditaduras e agredirem vizinhos. Houve regimes autoritários 'eternos' (o dos faraós, por exemplo), mas eles sofriam revoluções e mudanças internas constantemente e, por vezes, elas conduziam a guerras civis - o que diz tudo. 

Havendo lucidez, sabemos por onde vamos. Havendo coragem, vamos mesmo. 


12.5.22

São os vizinhos da Rússia que pedem para entrar na OTAN

É uma lembrança pertinente, porque muitos tentam passar a versão (russa) de que há um plano expansionista, ofensivo, da NATO para chegar às fronteiras ocidentais das Rússia por todos os lados. Putin usou essa distorção para (também por aí) justificar a invasão e ocupação da Ucrânia - que ainda não conseguiu efetivar, felizmente, no que diz respeito à ocupação.

Note-se, de passagem, que a colonização de toda a Ucrânia seria fundamental para abarcar campos de cereais, espaços estratégicos, controlo dos mares internos, riquezas de subsolo, como também para deixar de pagar a taxa pela passagem do gás. O plano de Putin para ocupar a Ucrânia vem de longe, foi meticulosamente preparado e sistematicamente tentado: começou com a tentativa de colocar e manter na chefia do país um corrupto pró-russo, contra o qual a maioria da população se revoltou. Continuou com a ocupação de territórios ucranianos onde se fala russo (numa operação semelhante - mas mais cautelosa - à dos sudetos 'alemães' com Hitler, que os levava até à Morávia). Depois a ocupação da Crimeia. Agora a ocupação de todo o sul do país para ligar o Donbass à Transnistria. Por fim, e já destruído quase todo o país, era só fechar a tenaz... 

Por força, talvez, da velocidade e voracidade capitalista, sobretudo na imprensa, a memória coletiva ocidental e global encurta e certas falácias passam sem que ninguém pense muito nelas. Quando a URSS acabou, vários países integrantes da NATO discutiram se ainda valia a pena manter a Organização, visto que se extinguira o inimigo comum. Nunca se pôs na mesa a ideia de cercar a Rússia e dar cabo dela, o inimigo estava extinto: era o regime do PCUS. Acabou prevalecendo a ideia de que a organização podia ser reformulada e readaptada aos novos tempos com vantagens para todos. 

Mas vários países da antiga esfera soviética, mantendo viva a memória histórica da atuação da Rússia e da URSS, quiseram passar a fazer parte da Organização, bem como da União Europeia. Quer a NATO quer a UE foram sempre cautelosas e lentas a avaliar os pedidos de integração. Sabiam que não estavam preparadas para uma entrada, de rompante, desses vários países e, também, sabiam que a Rússia tentaria abafar ou neutralizar os países vizinhos sob a desculpa de que a NATO - inimiga da URSS e não da Rússia - era uma organização ainda inimiga, portanto não se podia deixar que chegasse muito perto. 

A recente posição da Finlândia e da Suécia - países habitualmente neutros - o seu pedido de integração na NATO (como já antes a vontade ucraniana de integrar a Organização), não resultaram de nenhum plano de expansão da NATO ou dos EUA, nem de qualquer outro fantasma dos que os soviéticos agitavam para assustar os seus discípulos contra o inimigo. 

Os vizinhos da Rússia conhecem-na, conhecem Putin e sabem que ele encarna ainda o expansionismo soviético e russo. Putin é um conservador em concordata com a igreja e os oligarcas, por isso Orban, M. Le Pen, Bolsonaro, se revêm nele (e procuram constituir uma igreja dominante quando há várias igrejas fortes). Mas o expansionismo que protagoniza, inutilmente, o chefe do Kremlin é uma herança histórica da velha Rússia - que não tem liberdade para resolver ou discutir os seus problemas (outra herança histórica da velha Rússia, o despotismo). 

Não há nenhum plano da NATO ou dos EUA para isolar e aniquilar os russos, nem nenhum plano de Putin para 'libertar' os vizinhos dos 'nazis'. Há só um plano de Putin para anexar os países vizinhos, ou confiscar a sua liberdade, como se fez na Bielorrússia, manipulando um ditador do calibre dele, mas muito fraco de cabeça e falho de personalidade. 


https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/05/12/finlandia-quer-adesao-sem-demora-a-otan-suecia-tambem-deve-quebrar-neutralidade-militar.htm


Entretanto a Turquia bloqueia a entrada da Suécia e da Finlândia na OTAN. Porquê? Porque abrigam militantes curdos. A lei de Erdogan é a mesma de Putin, isso já sabíamos: eliminar toda a possibilidade de resistência política ou militar, de divergência séria e consequente. Na verdade, os choques entre a Turquia de Erdogan, a União Europeia e a NATO, já vêm de há anos e, prudentemente, os europeus recuaram na possibilidade de adesão da Turquia. Na verdade, Erdogan tem um pé na Europa e Otan, não pela Geografia, nem pela História (o que ligava a Turquia à Europa na História era o contrário do seu fundamentalismo islâmico). O pé firme, porém, está no mundo islâmico. Esse é o seu mundo e é o que ele representa às portas da Europa. 

As suas negaças tornam mais claro e mais difícil o jogo: de um lado, a liberdade, do outro as ditaduras. Erdogan não faria pirraça para que lhe devolvessem opositores se estivesse realmente preocupado com a expansão russa. E devia estar. Ou estará mesmo? Os próximos dias dirão. Porém, mais uma vez, ele mostra que só tem um fito: eliminar opositores e consolidar a sua monarquia islâmica, onde figura como presidente vitalício de facto. Vai haver eleições na Turquia? Também já houve antes... até na Rússia.