30.8.21

Södergran - o despojamento e o super-homem


A tradução brasileira (Cecilia Schuback) das Atenções esparsas de Edith Södergran (1892-1923), cujos poemas se podem ler em rede em português do Brasil também (com tradução de Luciano Dutra), entre muitos outros pontos de interesse nos mostra o confuso quadro mental, ideológico e talvez partidário (por consequência) da passagem do século XIX para o seguinte. 

Quando a semiosfera em que funcionamos está confusa, diversificada, oscilante, há pessoas inseguras com isso que se autodeterminam uma disciplina redutora, castradora, que recorta da realidade e do pensamento um perfil único, irredutível e não-discutível a partir do momento em que se adote. São ditadores, denunciantes, capatazes ideológicos, legiferinos e outras potestades menores. Mas há personalidades que oscilam, experimentam, procuram aprofundar, examinam e tentam desenvolver as potencialidades de cada perspetiva, dando-se bem nessa semiosfera instável de fronteiras híbridas. 

Terá sido o caso de Södergran. Desde logo, nascida em São Petersburgo, finlandesa, escrevendo poemas em língua sueca (svenska), por sua vez uma língua que se grafa (na Suécia pelo menos) por alfabeto latino (quase uma contradição: alfabeto latino). Visto assim de fora é uma sopa quase indiscriminada. Historicamente perspetivado se explica (sobretudo pela história política da região). Na pessoa, porém, lá dentro, é a arca de Noé nas ondas do mar, uma coisa só com muitas dentro e nenhum rumo definido, reduzido, ou seja, sem montanha prevista para encalhar. 

A poesia de Södergran faz uma síntese pessoal de procedimentos, referências e sugestões emotivas (entre alegria e melancolia, clareza e insinuação) oriundas do simbolismo, do expressionismo e do recurso ao verso livre, ao imaginismo antes do tempo (se preferem: avant la lettre), ao modernismo de que foi primeira representante no seu circuito de leitura inicial (o de língua sueca). Um volume de cartas e sete de poemas concentram a sua obra, pessoalíssima. 

Em 1919 publicou as Atenções esparsas, bem ao estilo da época e bem ao seu estilo. São de facto fragmentos textuais, dispersos, embora possamos reuni-los sob duas ou três linhas temáticas dominantes. Aforismos por vezes um pouco dilatados, lembrando vagamente os de António Ferro em Portugal (a Teoria da indiferença, de 1920), há entre os dois livros potencialidades comparativas inexploradas. 

As pp. 60-61 da publicação brasileira mostram bem o quadro mental oscilante a que me refiro (e que António Ferro, pouco depois, decidiria superar e unificar à direita). 

A sua poesia revela uma abrangência dialogante como utopia política. Pelo menos isso me parece visível neste poema: 


If I had a big garden

I would invite all my brothers and sisters there.

Each one would bring a large treasure.

We own nothing, thus we could become one people.

We shall build bars around our garden

letting no sound from the world reach us.

Out of our silent garden

we shall bring the world a new life.


Nas páginas a que me refiro (de Atenções esparsas) há quatro fragmentos. O primeiro da p. 60 diz: 

Os três grandes presentes da vida: pobreza, solidão, sofrimento, só o sábio estima o seu verdadeiro alto valor.

O primeiro da p. 61 diz: 

Um verdadeiro homem não precisa de nome, ele vem, vê e vence.  

A diferença entre os dois fragmentos evidencia-se por si. O primeiro nos remete para os santos, a humildade cristã, a sabedoria da aceitação e a soberania do despojamento. O segundo para Júlio César e Nietzche, para a afirmação heróica do superhomem. 

Os dois fragmentos do fundo da página, ironicamente, engrandecem Napoleão por ousado e aventureiro. Apontam-no também como o ser necessário naquele momento (Hitler e Mussolini agradeceriam, embriagando-se com os mitos militares de uma História que não souberam vencer):

O que agora precisamos, é o ser humano mais ousado, este que uma vez carregou o nome Napoleão. 

A postulação era já sensível às massas, como se vê logo no começo da página seguinte: 

Quem não é um ser de ação diz que as massas fedem, mas Napoleão não tem nenhum faro e as ondas o carregam. 

No extremo oposto (p. 63, ao fundo) outro fragmento retorna para o espírito cristão, para a moral de raiz cristã: 

Quem tem poder sobre corações deve tratá-los como algo sagrado.

Era típico da época, para aqueles que abraçavam a maioria dos modernismos e a art nouveau, 'curtir o momento', ou 'o instante', ou 'o flash', como se disse muitas vezes décadas depois, ao longo dos anos '70. É típico também do aforismo, melhor, das recolhas de aforismos ou da série textual aforismos. Eles são ditos em diversas ocasiões, o que os torna contraditórios se postos um perante o outro, se pronunciados ou lidos ao mesmo tempo dois aforismos que se destinam a duas situações opostas. Mas no começo do século XX era por outro 'espírito', por outra mentalidade e atitude perante a vida que se recorria a estruturas aforísticas, com uma vaga pretensão literária e filosófica ao mesmo tempo. E tudo seria inconsequente se fosse levado nesse 'espírito' (a seu modo, uma utopia do presente instantâneo, que tal como as outras precisava de ver toda a gente envolvida ao mesmo tempo e no mesmo sentido para resultar). O que sucede nesses momentos, ou logo a seguir, é que os mais determinados e condicionados organizaram-se e disciplinaram-se no sentido de abafar os outros, que por confissão não podiam fazê-lo. Por isso António Ferro montou uma imagem do salazarismo e Södergran morreu.  

A oscilação entre a sabedoria pelo despojamento ou pela personalização transfigurada em mitos heroicos é um dos eixos temáticos do livro. Não se vê contradição nenhuma, são representações de momentos íntimos e sociais, pensamentos, meditações e sentimentos e emoções tudo misturado numa prosa breve e levemente poética. Mas elas (essas expressões) não tinham como evitar as correspondências político-partidárias. A primeira correspondência, de raiz cristã (mas não só), devia ser um dos pilares morais das democracias (entretanto consignadas ao mito dos grandes homens - economistas, políticos democratas carismáticos, artistas, pessoas excecionais mas que não tentaram, pelo menos no panegírico, limitar a liberdade dos outros: os reis das democracias, como De Gaulle, Rockfeller, Ford, Reagan, Napoleón Duarte, etc., etc.). A segunda é nitidamente autoritária, ditatorial e o homem providencial, herói supremo da História antecipada, encontra-se tanto nas ditaduras de Direita quanto nas de Esquerda, tanto nas forças armadas quanto na Fac. de Direito da Univ. de Coimbra. 

Estamos ainda hoje - nós, a humanidade - a assistir ao desenvolvimento das duas tendências e não conseguimos encontrar ainda a superação das suas limitações e dos seus abismos. Nem conseguimos ir além de oscilações breves e inconsequentes como ponto de fuga para o nada.