6.6.23

O pós-lítico

 

Pouco a pouco, a humanidade vai finalizando a extensa etapa neolítica e, com isso, vai se reestruturando, ou pressentindo a necessidade de o fazer, ou sentindo, pelo menos, a desadequação dos modelos e valores líticos. Acontece em todos os campos de atividade. 

Uso dois para exemplo. 1) O político, focado na representatividade; 2) O artístico, focado na recoleção e refuncionalização. 

1) As diversas formas de representação política foram se aprofundando, principalmente nas democracias. A representação orgânica, apesar de manipulada por regimes totalitários e por isso rejeitada, era útil (e em parte ainda o é), sendo por isso recuperada através de órgãos como Conselhos de Concertação Social ou Económica, em democracia mais consequentes do que as assembleias partidárias, cuja função hoje tem sido mais, nesse aspeto, vigiar, aprovar, ou reprovar - uma função idêntica à dos reis em monarquias modernas ou liberais, apenas com o redutor acrescento da subordinação a estratégias meramente partidárias. O crescimento do poder local, o reconhecimento da sua representatividade, remete-nos de novo para a recuperação, em democracia, de um modelo orgânico de representação e de concertação política real. 

Entretanto, crescem os empregos e os nómadas digitais, as facilidades de deslocação para mudança de residência, como também a mobilidade financeira pela facilitação das operações cambiais e bancárias. Aumentam, por igual, os empregos alternativos, subempregos e desempregados que se 'remedeiam', se 'viram', com pequenas atividades e rendimentos, as consequências da automação máxima das atividades mecânicas, antes asseguradas por artesãos (hoje reduzidos ao artesanato personalizado, muito mais digno, mas menos lucrativo para empresários). 

O modelo tradicional de casamento monogâmico esboroa-se em paralelo, continua a esboroar-se desde a aceleração do quotidiano provocada pelo domínio absoluto das indústrias e do comércio de massas, com seus horários, pressas e pressões e suas linhas de produção contribuindo para o hábito de alinharmos o pensamento, colocarmos tudo em prateleiras. Estar casado ou não, ter várias parceiras ou vários parceiros, é uma questão de prateleiras, indiferentes umas às outras e os apertos dos horários e das tarefas urgentes não nos permitem já manter acesa durante algum tempo a chama de uma paixão primeira, mais funda, mais forte. Passamos os dias (e por vezes as noites) com outras pessoas. O parceiro(a) passa a ser apenas o da rotina dos sonos ou, quando muito, o dos fins-de-semana entediantes em família, das discussões sobre o destino a dar ao dinheiro e à falta dele, por vezes aos filhos... Isso traz implicações políticas, além de estimular a anulação do pensamento por alinhamentos prévios, típicos da produção em série. Com tempo e o avolumar das tensões, do mal-estar, do sentimento de não nos vermos representados e realizados, isso vai nos levar a pensar no que fazemos e como. Porque somos escravos do trabalho? Onde começou tal escravidão? Não foi na Bíblia, não. Vai ter de se repensar a estruturação do poder e da legitimidade, mas sobretudo da representatividade quealicerça e efetiva poder e legitimação, que não podem continuar a governar-nos metendo-nos em becos sem saída, em prateleiras e quartos. 

As estruturas de mando e representação, com recuos e avanços, foram seguindo modelos muito primitivos, titubeantes, oscilantes, mas que se definiram melhor e se complexificaram com o neolítico, a concentração urbana e de bens, uma conceção integrada e alargada de defesa do grupo, a sedentarização e a estabilização tendencial das hierarquias sociopolíticas. A monarquia tornou-se uma espécie de espelho e regime natural da sociedade humana, que no entanto suportava bem repúblicas autónomas, que tendiam para impérios (mono-árquicos) conforme se estendiam e enriqueciam mais. O que as monarquias tinham de melhor era uma visão orgânica e autárquica da sociedade, embora gradualmente se centralizando até ao ponto de sistemas absolutistas que as implodiram em repúblicas e partidismos por reação, deixando a estruturação social tradicional implodir também, com as pessoas isoladas perante o Estado - o novo Absoluto. Mas as monarquias foram superadas, se olharmos mais fundo, não pelos liberalismos, nem pelo assassínio dos reis, foram superadas pela produção em série, pela atribuição de categorias e estantes meramente em razão de reduzirmos os custos e aumentarmos os ganhos. Isso é necessário para gerir uma empresa, mas é ruinoso quando se exporta para fora da gestão de empresas. Ora, uma monarquia pode ser considerada uma despesa dispensável e, no entanto, volumosa. Então acaba-se com ela e ficam-nos os reis da banca, do aço, do petróleo, das várias prateleiras da produção acelerada.

O recente modismo dos regressos radicais, extremos, muito ao para trás no tempo, que impera nas dietas, nas roupas, em certos costumes e na recuperação de rituais arcaicos, implica o repensar do próprio processo que trouxe a humanidade aos dias de hoje, do que se pensa e pensava serem os seus fundamentos. É salutar, mas caminhamos a passos largos para uma política e uma humanidade pós-líticas e ainda não vislumbrámos as adequadas estruturações políticas e representativas.


2) As artes estão exatamente no mesmo ponto, embora com o seu nível próprio de complexidade, mais intenso e diversificado, por vezes ainda mais avançado. 

As instalações, performances, ready-mades, colagens, articulam-se com práticas antigas, mas recontextualizadas, de recolha e refuncionalização de elementos contextuais. A diferença consistiu somente - sobretudo no século XX - na massificação e no descaro dessas práticas, tornadas igualitárias (qualquer um pode praticar, independentemente das consequências estéticas e éticas), de todos para qualquer um, indiferenciadas, aleatórias e, sobretudo, feitas em bruto, sem preocupação de esconder o 'segredo' que mitificava o 'génio', mais que individual, pessoal - e, por tanto, intransmissível. A reciclagem de que tanto fala a ecologia, com defensores das energias renováveis, e similares atitudes ou posturas que parecem constituir soluções (e podem mesmo ser), em verdade estão a revisitar os fundamentos, os começos, da época lítica e sobretudo a passagem do paleo para o neolítico. Em arte, as disciplinas híbridas acompanham criativamente e mimetizam essa revisitação. Porém, tanto quanto na estrutura de representação e na de poder, não se deu passo para o pós-lítico, ainda vivemos a funda e vagarosa transição. Somos cães domesticados: ainda estamos a alçar a pata para marcar terreno sobre o asfalto e o 'concreto'. 

Como sabemos estudando literatura, os mimetismos, hibridismos, as colagens, o culto da performance e de ready-mades verbais acentuaram-se nos séculos XIX e XX nos países mais desenvolvidos técnica e economicamente, sobretudo nas democracias do hemisfério norte, mais ricas. Mas eles eram e são constituintes de qualquer arte e mimetizam os mesmos processos de recolha, armazenamento, reaproveitamento. São processos que, intensificados, vieram a dar em sistemas e estruturações de representação e de poder típicos do neolítico, desse neolítico ainda presente. 

Muito lentamente algumas manifestações artísticas procuram mimetizar a maleabilidade, portabilidade, e dinamismo dos seres humanos nas sociedades atuais e a sua instável e insatisfatória (por enquanto) sociabilidade. Há experiências híbridas entre o teatro, a performance, a mímica, o episódio curtíssimo (sketches, cenas, vinhetas), com pessoas por vezes ligadas a mesas de mistura que ampliam e remisturam a produção do performer e a reação do público. São exemplo de mimetização dessa maleabilidade, portabilidade, informatização e dinamismo social instável. 

Experimentações anteriores em três ou quatro décadas, como as dos motores textuais e da ciberliteratura, tentaram chegar ao limite possível e impossível das típicas montagens, recolhas e colagens que foram a base das artes humanas desde o neolítico. Os motores textuais, por exemplo, dessacralizaram as reestruturações, colagens e montagens pela reprodução, sem critério de escolha, de todas as combinatórias possíveis de um determinado agrupamento de palavras, em frase ou mesmo sem frase, como numa linha de produção aleatória, sem definição de série. A ciberliteratura mostrou que o próprio texto pode ser mutável, inesperado, e variar, não só de pessoa para pessoa, mas com a mesma pessoa, quase materializando um procedimento cerebral e neurobiológico básico do funcionamento humano. Film-letras - antepunha e antecipava Augusto de Campos. Essa experiência aproximou-nos - arrisco dizer - da expressão da vivência de hoje, em constante mutabilidade, instabilidade e sem tábua de salvação. No entanto era controlada pelo programador de software

A maior parte da produção literária continua se fazendo como se tais experiências não fossem de levar em conta, não mexessem com nada. Por vezes escrevem-se poemas que são fragmentos, anotações, sem preocupação de unidade, acasos, mas sofrem da mesma ausência de escolha, propósito e ressignificação que inviabilizou as experiências informáticas. E também são fragmentos frouxos, tíbios, frágeis mas não delicados, pouco mais que manifestações de vontade de dizer, próprias de adolescentes que aprenderam a falar mas ainda não a discursar ou declamar. Então continuamos a ler uma poesia costumista, intimista, penumbrista, com versos aparentemente modernos (a modernidade de há cem anos atrás) e no entanto ritmados para sugerir ambiências recolhidas, particulares, entre gaveta e armário, com metáforas polidas e qualquer coisa de crocante nas pastilhas elásticas. Esse costumismo prosaico e versicular irá manter-se, amanteigado, cremoso, luxuoso, ou aparentemente irrequieto, com seus resquícios de grão para que sugira sementes, algum erotismo mais atrevido na aparência (mas de facto banalizado), aleatório no bem-estar típico das sociedades com melhor nível de vida e liberdade. Só quando se passar a uma humanidade e a um quotidiano totalmente pós-lítico se perceberá quanto e em que medida, ou qualidade, foram pertinentes as experiências cibernéticas e performáticas, tateando as possibilidades de uma expressão artística pós-lítica. Até lá, tais experiências não se devem também tomar como mais do que isso.