30.4.23

Universidade e Política: desfazendo equívocos

Aqui e além vemos repetirem-se chavões sobre as relações entre universidade, ciência, política e partidos políticos. É a maneira destas sociedades 'de massas' funcionarem, tipo pasta, mistura-se tudo, indiscriminadamente, atinge-se um chavão e depois lutamos uns contra os outros através de chavões. É esse procedimento o principal aliado dos inimigos da liberdade e da democracia, porque não há liberdade de chavão e o voto de clichê é a recusa de fazer escolhas. 

O mesmo sucede com o tema da Universidade e da Política. Tornou-se canónico dizer que "o poder" (outro chavão que dá muito jeito aos trapalhões do pensamento), "o poder" não deve interferir na... escolham: academia, universidade, ciência. Deve, no entanto, financiar. 

Quero pensar nisto sem me referir a casos episódicos, outro truque para baralhar as pessoas, que é o de usar casos episódicos (quero dizer: não elucidativos do que está em debate, mas sim de boas ou más condutas deste ou daquele protagonista), usar casos episódicos para neutralizar argumentos e propostas que vão muito para além deles. 

Comecemos por clarificar isto. Se o comunismo falhou na Rússia, podia ser episódica a falha. Se falhou em todo o mundo, se nunca se realizou a progressão que os primeiros comunistas imaginaram e se manteve sempre válida (a caminho da sociedade sem classes), então são demasiados casos episódicos e temos de postular a hipótese de o comunismo ser impraticável. 

O mesmo para os nacionalismos exacerbados, os fundamentalismos, identitarismos, etnicismos e tribalismos. Se todos esses 'ismos' produziram guerras, violência, repressão, mortes indiscriminadas e outras que, discriminadas, não deviam ser mortes, então será de pensar que os 'ismos' não-comunistas provocam igualmente uma série tal de distopias que se tornam, para a sobrevivência da espécie e por questões éticas, impraticáveis.

O que nos levaria a pensar que o mal está nos 'ismos'. É, porém, mais funda a raiz do mal e os filósofos até hoje mal se entendem sobre isso. O mal está numa atitude que visa condicionar, limitar, dirigir, encadear a perceção e o pensamento. Quando certa esquerda, com o lamentável e distópico Chomsky, falava em 'pensamento crítico', ingenuamente muitos pensaram que se tratava de ser crítico relativamente a essa atitude que visa manipular os outros para fins de poder, tal como a publicidade os manipula para fins comerciais e pior ainda, porque supõe normas repressivas, que forçam, quando a publicidade aposta apenas no convencimento, na sedução, na manipulação afetiva, na sua retórica própria, sofística sem dúvida, mas visa tão somente convencer-nos a consumir produtos de uma dada série. 

Quando se tornou consensual que "o poder" não devia exercer-se sobre as universidades, a ciência, a filosofia, as artes, até parecia liberalismo: o Estado não interfere. Mas não era, porque o mesmo "poder" ou "Estado" devia sustentar tudo isso. Ora, esse "poder" ou "Estado" é financiado por todos, porque todos somos obrigados a pagar impostos e a ceder rendimentos comuns (por exemplo, o petróleo angolano - ou de qualquer outro país - é de todos os angolanos, mas apenas favorece os que efetivamente controlam o tal "Estado", ou seja, os angolanos cederam para essa elite político-partidária um rendimento comum, uma cedência de resto sem qualquer alternativa para além da morte). 


Se o dinheiro que sustenta "o poder" é de todos e se "o Estado" deve financiar sem intervir usando esse dinheiro comum, quer isso dizer que os tais todos, o povo em geral, abdicam de decidir - nesse campo específico - para o que se deve usar o seu dinheiro. Quem decide, nesse caso? Quem controla cada um dos setores que beneficiam desse 'cheque em branco'? Esses setores organizam-se de forma, não por acaso, pouco democrática, afetados por pequenos mas arbitrários e ditatoriais controlos por parte de alguns que se tornam, graças a isso, 'estrelas' e, como 'estrelas', iluminam os rumos do dinheiro. Voltemos a um caso, não somente episódico, mas sintomático: o do mesmo Chomsky. 

Não por acaso, os seus discípulos e discípulas na academia foram passo a passo eliminando todas as correntes linguísticas não-chomskyanas e recorrendo aos piores argumentos: acusando-as de 'atrasadas', 'exóticas', 'erradas' (incluindo moralmente). Um dos divergentes foi um pesquisador que descobriu uma língua exótica, na Amazónia, que não possui um dos 'universais' da linguagem postulados por Chomsky. Foi perseguido academicamente nos EUA e, pela correia de transmissão imperialista que também domina a esquerda brasileira, ele e seus colaboradores foram perseguidos nas universidades brasileiras. Abafados, silenciados, des-contratados. Entretanto, cada vez se torna mais evidente que: 1) os 'universais' da linguagem podem não ser necessários ao funcionamento da linguagem, pelo que não serão caraterísticos de todos os seres humanos; 2) a fundamentação da sua existência não precisa nem do inatismo (isso o próprio Chomsky acabou reconhecendo, refazendo a sua teoria nesse ponto particular e 'exógeno' a ela), nem de nenhuma outra forma (que não a inata) de uma 'gramática universal'. O tendencialmente universal - e sublinho que tendencialmente - não é nenhuma gramática da língua ou da linguagem, são as estruturações percetivas e a articulação entre elas e o funcionamento cerebral, sendo que os dois (estruturações percetivas e cérebro) se formam e crescem juntos, constituindo um só, que por necessidade analítica separamos momentaneamente, como os médicos separam momentaneamente um órgão para curá-lo, sem, no entanto, esquecerem que ele nunca funciona sozinho. 

Ora, perante a verdadeira ditadura universitária chomskyana, ou da gramática generativa, "o poder" e "o Estado" não se devem pronunciar? Nós, que pagamos todos impostos e temos as mais diversas opiniões (incluindo sobre a gramática generativa), perdemos o direito de decidir sobre se o nosso dinheiro serve ou não para eliminar doutrinas e metodologias académicas, reduzindo-as a uma só? E o senhor Chomsky, pelos vistos, não percebe que o pensamento crítico se exerce relativamente à sua teoria quando alguém a põe radicalmente em causa fundado numa investigação própria e pertinente? E que tem, mais que o direito, o dever de exercer o pensamento crítico também sobre as teses chomskyanas?

Por outro lado, os que se apropriaram da expressão 'pensamento crítico' para reduzi-la à sua estratégia político-partidária, foram eles mesmos que impuseram uma visão política e partidária às universidades que dominaram. Fizeram-no porque, na velha linha marxista, para eles o pensamento que não tivesse a pretensão de transformar era inútil, preguiçoso, indolente, burguês, alienante, etc etc. E, se o pensamento e a ciência deviam transformar, em que sentido se daria tal transformação? Num sentido muito particular, definido pelo velho marxismo, o da revolução socialista e da sociedade sem classes. 

Então, foram eles mesmos que propuseram que, por exemplo, se criassem Centros, Grupos, Institutos e Faculdades cujo único fim seria o de analisar as sociedades de forma a conduzi-las à dita 'transformação' no sentido de uma sociedade igualitária, sem classes, e socialista ou comunista. Quando correntes de pensamento divergentes reclamam dessa verdadeira ditadura e apontam falhas graves no financiamento do 'saber' pelos poderes públicos (ou seja: pelo dinheiro comum, que não é distribuído por igual por todas as correntes críticas), os mesmos grupos que defendem que a ciência é e deve ser, obrigatoriamente, política e partidária, vêm repetir o velho chavão de que "o poder" (dos outros) não deve interferir nas universidades (deles). Mas o povo não decide o que quer? 

O poder, exercido através de representantes eleitos em liberdade, tem a obrigação de clarificar os critérios para a distribuição dos dinheiros públicos também no campo do 'saber'. Não por fulanismos e casos episódicos, mas por princípios e critérios, incluindo financeiros, económicos, de gestão, embora levando em conta que gerir o bem público não é o mesmo que gerir uma empresa particular. Princípios e critérios que devem ser aprovados e fiscalizados publicamente. Por exemplo, definir as percentagens que suportam cada ramo científico (quanto para medicina? quanto para física? para ciências humanas?). Não definir para a eternidade, mas a cada legislatura, por exemplo, ou a cada 10 anos, por exemplo também. 

O poder, exercido através de representantes eleitos em liberdade, pode e deve determinar que haja diversidade de opinião sobre qualquer tema que seja dentro das universidades e que não haja nenhum campo de investigação no qual trabalhem todos com a mesma metodologia e segundo as mesmas hipóteses teóricas. 

É cínico e próprio de trapalhões mal-intencionados argumentar que "o poder" não deve interferir 'na ciência', portanto, 'na ciência', quem conseguir o controlo, seja como for, manda como quiser, impunemente, e determina que dinheiros lhe serão dados. A verdade é que o dinheiro não é da ciência - mesmo quando ela o gera. A verdade é que a ciência nunca avançou na monologia, na mesmice, sob controlo ideológico - teve, em alguns casos, avanços particulares, parciais, dentro de um setor de uma teoria e de uma metodologia. Isso é pouco, muito pouco para quem pretende estudar a verdade, ou seja, aquilo que nos guia para a ação, aquilo que da realidade percebemos como interlocutores. 



13.4.23

Verdade e liberdade

 

Onde não há liberdade não há verdade