12.10.22

Comunismo, em 1873 - definição

 "Systema de uma seita socialista, que pretende fazer prevalecer a comunidade dos bens, isto é, a abolição da propriedade individual e a entrega de todo o haver social, nas mãos do Estado, que fará trabalhar, e distribuirá os produtos do trabalho pelos cidadãos."

Grande Dicionário Português ou tesouro da língua portuguesa, feito sobre o manuscrito original. "Inteiramente revisto e consideravelmente aumentado". Escrito por Fr. Domingos Vieira, "dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho". A citação consta do vol. 2 (C-D), de 1873 (Ernesto Chardron ; Bartholomeu H. de Moraes), p. 321.


4.10.22

Um dos piores presidentes da História do Brasil

 Com uma ampla maioria de direita confirmada, mesmo que internamente contraditória e desorganizada, com vários eleitos de direita contra Bolsonaro sendo eleitos tanto quanto os direitistas que ainda o apoiam, depois de gastar rios de dinheiro público para angariar apoios na Câmara e no Senado, mesmo depois de gastar rios de dinheiro público reforçando subsídios sociais provisórios para enganar os pobres, Bolsonaro perdeu o primeiro turno por quase 5% para Lula, num combate entre dois ex-presidiários que se acusam de sê-lo e dois presidentes corruptores ativíssimos. 

Note-se que, no Brasil como nos EUA, é raro um presidente em exercício perder eleições para renovação do mandato. 

Para não perder por mais, Bolsonaro teve de adotar, agora e ao longo do mandato, medidas e manhas que publica e acerbamente criticava para se eleger a primeira vez. As conclusões a tirar, seja qual for o resultado do segundo turno (numa eleição decidida por anticorpos), as conclusões a tirar evidenciam-se: 

1) A vaga de direita no Brasil é de direita mais do que bolsonarista, por isso a direita venceu as eleições no primeiro turno em que o presidente direitista perdeu.  

2) Este presidente cometeu dos piores erros da história da república brasileira, mostrando-se despreparado para o cargo e sobrevivendo por artimanhas retóricas e esmolas. 

Uma maioria parlamentar de direita e um presidente de esquerda limitado por ela se desenham como possível e equilibrada solução para o fragmentarismo político brasileiro. Solução provisória, sem dúvida. 

Quanto ao PSDB, cometendo erros sobre erros, está a pagar caro pela perda de coerência e de estratégia. Tornou-se um mero partido de burguesinhos e patricinhas, muito habilidosos para as intrigas caseiras e que se derretem no calor das ruas. 



16.9.22

Comunidades imaginadas e desculpas imaginárias

Sofismático o recurso constante ao conceito de «comunidade imaginada» para defender que os povos e os Estados nacionais têm de pedir desculpas por isto ou por aquilo. Coloca-nos vários desafios esse recurso: 

1) Todos os membros da comunidade também têm de se vangloriar (em conjunto) pelo que imaginam ser glorioso no passado da sua nação?

2) A comunidade imaginada hoje é o mesmo que a comunidade imaginada ontem, sendo por isso corresponsáveis? 

3) A comunidade imaginada hoje imagina-se com todo esse passado ou imagina-se com todo o seu presente e fragmentos escolhidos do passado? 

4) A comunidade imaginada imagina-se sob alguma forma de animismo que implique os espíritos dos antepassados nas mentes dos vivos? 

5) Finalmente: a comunidade viva é diversa, mesmo contraditória, como também foi no passado. Deve-se, portanto, concluir que, no presente, a comunidade nacional de um dado país se imagina de forma plural e contraditória. Conclui-se, nesse caso, que não há nenhuma comunidade imaginada, no singular, há vários segmentos sociais imaginando uma comunidade nacional que é diferente da que imaginam os outros grupos. 

Supor que, em nome de uma comunidade imaginada, se deve pedir desculpas, ou nos devemos vangloriar (o mesmo princípio justifica as duas atitudes), pelo passado de uma nação é supor que essa comunidade se imagina da forma e com o perfil com que eu e os meus correligionários a imaginamos. Equivale, portanto, a obrigar o todo a reagir de acordo com o que um setor particular pensa desse todo, ou de como ele se imagina, sem que se pergunte ao conjunto o que pensa do assunto e das interpretações dos vários grupos. Ora a comunidade real, tarde ou cedo, se encarrega de nos mostrar que estamos a imaginá-la abusivamente. É desta cegueira que, em parte, resulta o sentimento de muitos povos hoje que, em percentagem significativa, não se revêm numa atitude política tomada em seu nome sem que se lhes perguntasse nada sobre o assunto - não sendo, porém, solidários com nenhum massacre, que vários deles combateram, denunciaram e tentaram evitar, imaginando assim outra comunidade, a que se orgulha de ter combatido o regime que massacrou e colonizou. Com tais combates é que se redime a História, não com sofísticos pedidos de desculpa.

Transpondo a polémica para um país concreto e não previsto nessas discussões, imagine-se como aplicar o conceito aos ruandeses - e não se esqueçam de lhes perguntarem o que pensam, no seu conjunto e nas suas contraditórias imaginações de nação.


(esta anotação foi suscitada pela intervenção crítica de António Guerreiro, no supl. Ípsilon do jornal Público de 16-9-2022, sobre o texto polémico de Pacheco Pereira relativo a uma hipotética obrigação moral e política de pedir desculpas pelo massacre de Wiriamu)

27.8.22

Clichês, eufemismos e falsificações

 "Vejo que hoje há uma visão quase idílica da escravatura" - onde? escrita ou realizada por quem? 

Não conheço nenhum título nem nenhum pensador, ou escritor, atual, que subscreva "uma visão quase idílica da escravatura". Pelo contrário, alguns aprofundam a visão do tráfico de escravos mostrando como ele envolveu todos, desde a captura e venda na origem dos traficados até à compra nos últimos destinos. Hoje não é mais possível pensarmos que de um lado havia os bons e do outro os maus, como nos tempos da Inquisição ou da Revolução. Mesmo agentes da escravidão viraram por vezes escravos e vice-versa. Idílico dizer isso? Pelo contrário, uma distopia total e que nos mostra que não houve paraísos, idílios ou coisas parecidas na história dos homens.

Outros, ainda poucos e medrosos, demonstram como os processos, as legitimações, os recursos e as artimanhas se globalizavam nesse tráfico. Há muito e não só hoje se conhece também que, tanto escravos quanto senhores (os mais diversos), misturaram referências culturais enriquecendo as suas personalidades e estratégias sem que isso dependesse de ser ou não ser escravo ('coisas' de escravos eram apropriadas por patrões e vice-versa; claro que uns apropriavam como casta ou elite e outros como subjugados, mas todos misturavam traços culturais diversos). Dessas misturas resultaram muitas das culturas nacionais e regionais de hoje. Será isso que chamam de "visão quase idílica"? Nada tem de idílico, foram misturas apesar de, apesar da violenta e desumana realidade da escravidão, no entanto universal e multissecular (idílica esta constatação?). Apesar dela, e, muitas vezes, para torná-la mais eficaz, ou resistir dentro dela, dela-realidade-escravocrata, em sociedades desiguais e cruéis, impiedosas. 

Não interessa o autor da afirmação colocada no começo, dessa ou de outras afirmações idênticas, interessa a expansão dos clichês de cafés ou de twitters, tão nauseabundos quanto os outros e visando maior efeito imediato. 


Outro clichê, equivalente, reporta-se sempre à "cultura dominante". A cultura dominante, hoje, é a que se reporta à "cultura dominante" criticando-a, como se vê pelos prémios e subsídios académicos, pelos títulos e subtítulos de textos de divulgação, manuais de ensino, páginas de cultura de periódicos generalistas, discursos de políticos oportunistas. Desde há várias décadas é assim. E faz-se a crítica denunciando 'um tempo em que', sem se pensar nos espaços em que, como se todos os espaços fossem abarcados por um mesmo tempo social e político. A globalização não conseguiu tanta uniformidade...

À falta de uma realidade à qual nos opormos, em nome da hipercorreção político-partidária, para legitimar nossa ambição de 'subir na vida' e 'ditar regras', evocamos um fantasma do passado e, para não se reparar no anacronismo, metemos na frase a palavra "hoje". Belo truque de mágica para uma mensagem instantânea numa rede social de pessoas apressadas e fúteis. Porém, dizem "hoje", a gente olha para os lados à procura do tal idílio, nada se vê, nada se escuta, só pessoas a dizerem que é assim, "hoje", na "cultura dominante", mas os tais idílicos do tal hoje tornaram-se entidades míticas, sem chão, fantasmas para pagarmos aos feiticeiros... 

Hoje a escravatura chama-se migração ilegal, por exemplo, e os migrantes pagam até para morrer no caminho, pensando em melhorar a sua vida. Mas não vejo os que falam da "visão idílica" de "hoje" sobre a escravatura denunciarem isto e sobretudo nestes termos. Se o fazem é para demolirem e denunciarem mais uma vez o "Ocidente", várias formas de capitalismo, etc., ou seja, mais uns fantasmas, ignorando a origem dos problemas e das migrações, que vem na maioria dos casos de governos autoritários, promotores de profundas desigualdades sociais e sem que o tal 'Ocidente' esteja interessado nessas políticas. Como pode interessar, a quem procura extrair recursos rapidamente e barato, esse tipo de governação? Hoje, no hoje de hoje mesmo, sabe-se, traz mais problemas do que vantagens a governação corrupta, ineficaz para o desenvolvimento e autoritária. Traz, por exemplo, tarde ou cedo, instabilidade, a par de morosidade e despesa excessiva com agentes corruptores e corruptos, quando não com 'missões de paz' ou de guerra. Se uma potência pode extrair recursos em estabilidade, legalmente, porque irá promover guerras, missões de paz, ditaduras, em vez de negociar com governos eleitos e que precisam de se reeleger em liberdade? A liberdade, além de muito melhor para todos, é mais rentável que a opressão. Felizmente nisso sou idílico. É muito mais prático fazer-se acordos ao nível dos governos e pagar a governos eficientes, legais, democráticos. Só quando a instabilidade se torna insuportável (financeiramente) é que as grandes potências aproveitam para criar nichos estritos e provisórios de eficácia rápida na extração de matérias-primas. O que, por exemplo, a Rússia faz hoje descaradamente já e fizeram mais países para tirar petróleo do Iraque depois de 2003.

Hoje a escravatura é também a das mulheres retidas sem documentos em casas de grandes senhores, não do 'Ocidente', no qual os tais senhores e senhoras seriam felizmente denunciados, tarde ou cedo, por uma imprensa livre e combativa, como já sucedeu com uma jovem diplomata indiana em Nova York. Não no 'Ocidente' mítico, mas em vários países árabes reais e não só. Mulheres e homens de casta que trazem mulheres e homens pobres a trabalhar 'com a família', 'pobres' que são 'da família', escravos e escravas da família, 'de casa', recebendo pequenas compensações em troca de si próprios - como há milhares de anos os escravos sabem que se passa. 

Hoje a escravatura é a das pessoas a trabalhar sem salários, ou com salários baixíssimos, ou com salários em atraso crónico, situação frequente por exemplo em Angola. 

Que sentido faz, perante isso, escritores que se dizem empenhados em contribuir para o avanço da humanidade, concentrarem-se em desmontar "uma visão quase idílica da escravatura", pretensamente atual mas que, na verdade, não existe hoje em lado nenhum? Para quê 'atirar no morto'? mmmm...... 'passa a mão pela tua boca'...

Deixem-se de conversas para boi dormir a olhar o palácio... A tal humanidade, a humanidade sem clichês, aflita e real, saudará os vossos esforços quando eles forem de hoje e para melhorar o presente. O resto são 'redes sociais virtuais'... para vender livros e só melhoram o bolso dos oportunistas. 


12.8.22

O perfil da faca de Salman Rushdie

O apelo demagógico, oportunista e confusionista de Putin ao fim de um mundo dominado pelo Ocidente faz apenas parte da encenação justificadora de um apelo mais realista à legitimação de ditaduras que eliminam os seus oponentes fisicamente. Nesse aspeto, Putin e o fascismo islâmico são iguaizinhos a Hitler e seu nazismo, ou a Stalin e seu comunismo. Não por acaso, Putin e os dirigentes iranianos se apoiam mutuamente. Não por acaso, também, o regime iraniano usou dos mesmos argumentos de Putin perante a facada em Salman Rushdie: a culpa é do Ocidente. A culpa é sempre do Ocidente, pelo menos desde o fim do século XIX e, no entanto, os que vieram culpando essa entidade fantasmagórica deram-nos a pior das guerras mundiais, em que para acabar com o suicídio do povo japonês foi preciso largar uma bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki. Assim mesmo, deixem-se de subterfúgios. Os kamikazes suicidavam-se para assegurar que matavam o inimigo já vencedor e tudo em nome, não do imperador, mas do fantasma identitário que ele corporizava, aliado a um tirano alemão que pretendia eliminar sistematicamente judeus, pretos e ciganos. Deram-nos também as piores ditaduras, islâmicas, fundamentalistas, comunistas, nacionalistas (incluindo nazismo, fascismo, putinescas), racistas (incluindo o apartheid na África do Sul e os novos racismos), étnicas (incluindo Ruanda). Se isso é alternativa aos EUA e ao Ocidente, vamos aguentar com eles mesmo assim, que o resto continua sendo pior. 

Atitudes e discursos como os de Khomeini, Putin, Orban, Chavez, Maduro, Ortega, Xi Jinping, Trump, dos radicais islâmicos ou religiosos fanáticos de qualquer parte, dos grupos identitários extremistas, dos ditadores em geral e outros que escondem sê-lo ou ter isso programado, alimentam um ambiente geral de intolerância no qual a morte do adversário se torna até honrosa, conforme o ponto de vista do assassino. Não por acaso as facadas em Salman Rushdie foram comemoradas no Irão e o seu autor considerado um herói (aparentemente, nada oficial, manifestações espontâneas num país onde elas não existem). 

Salman Rushdie, desde 1989 (ano da publicação dos Versos satânicos) ameaçado pelo Irão e pelo radicalismo que ele protagoniza (não é o mesmo em todo o mundo islâmico), foi esfaqueado barbaramente hoje em Nova York. Para o significado do acontecimento, o perfil do autor do crime é pouco relevante. Mas é sintomático ter sido elogiado no Irão como um herói. Como também sintomático o silêncio dos que não protestaram contra o ato, dos que não denunciaram esse ato, incluindo chefes de várias ditaduras. Epistemologias diferentes? Não. A lei da morte é universal. O fim do famigerado 'mundo ocidental', ou do seu domínio, neste momento, significa apenas que não nos iremos da lei da morte libertando. 


22.7.22

Embate português entre populismo xenófobo e social-democracia

 Amigos de várias paragens me enviaram um vídeo no qual André Ventura (Chega, Portugal) e Santos Silva (presidente da AR, Partido Socialista, Portugal) entram num confronto verbal direto por causa da emigração. 

O confronto foi sintomático. 

André Ventura, como sempre, espalhava brasas e atirava barro à parede, muito nervoso sobretudo depois de escutar a primeira resposta do presidente da Assembleia, como se fosse inadmissível contrariarem-no. Ventura bradava contra a emigração legal e ilegal que pesa sobre o bolso dos portugueses, que têm de pagar mais impostos para sustentá-la e são secundarizados para se proteger estrangeiros. É uma reclamação muito usada já em vários países e até nem só de hoje. Mas, para a discussão ter alguma seriedade, o chefe do Chega devia apresentar números concretos. Eu não duvido que não se possa continuar em Portugal a receber indiscriminadamente emigrantes, por rutura da segurança social, mas é indiscriminadamente, o problema está na falta de racionalização dos movimentos migratórios. É que só a partir desses números se poderá definir qual o peso exato da emigração legal e ilegal nas contas do Estado e ver se, como, e até que ponto essas despesas são sustentáveis e que benefícios trazem aos portugueses os emigrantes, em que áreas, que empresas portuguesas precisam de mão de obra. Nesse aspeto, foi bom recentemente Portugal assumir que tinha falta de mão de obra na restauração e na hotelaria, abrindo-se a migrantes para trabalhar nesses ramos.  

Retornando ao tal embate, em seguida, apertado pela resposta amplamente saudada de Santos Silva, André Ventura ainda tentou recuperar terreno, interpelando o presidente da AR portuguesa por ele tomar posição. Porém, como de resto e com inteligência mostrou logo em seguida o deputado-presidente, pedindo aos seus colegas que deixassem André Ventura falar, a sua atuação não era parcial no sentido de prejudicar os direitos de um dos grupos em liça, mas apenas no sentido de manifestar a sua opinião sobre o que estava em jogo. É claro que, mesmo presidindo às sessões, o presidente de uma assembleia de representantes não deixa de ter opiniões próprias e não perde o direito de manifestá-las. O contra-ataque de Ventura à resposta do presidente do plenário não tinha força própria, era mais barro atirado à parede para sujar o nome do adversário, que o superava no duelo retórico.

Augusto Santos Silva, na sua esmerada educação e com tato retórico populista (mas à esquerda), elogiou os emigrantes, afirmou que Portugal devia muito aos emigrantes, mantendo a disputa no vago. Deve o quê, precisamente? Quanto? Desde quando? Certamente que muitos emigrantes contribuíram e contribuem para o bem-estar dos portugueses e vários outros pelo contrário, fornecem alibis para sustentar as acusações do Chega. É precisamente na definição do que vale a pena receber e do que é necessário rejeitar que o debate, com análises sustentadas em dados rigorosos, pode abrir caminho a uma resolução do problema.

Ou seja, para o duelo ganhar seriedade e consequência, penso que o presidente da AR portuguesa devia solicitar ao deputado Ventura que sustentasse em números e análise consequente as suas afirmações. Como candidato a primeiro-ministro e deputado que protesta contra a emigração, deve necessariamente apresentar dados, análises e propostas.

Assim, o 'bate-boca' limitou-se à repetição de posições inconsequentes e já conhecidas. Inconsequentes porque essas afirmações de princípio não resolveram nada, nem podem resolver. Apenas elogiar ou denegrir os emigrantes, nem numa conversa de bêbedos convence ninguém, só anima ou desanima os que já tomaram posição. Havia que chamar a disputa para a discussão da realidade (por exemplo a da Segurança Social entrelaçada com a da emigração). O dirigente do Chega, para além de não sustentar os seus comentários exaltados, também (nessa fala pelo menos) não propôs nada, só protestou. Augusto Santos Silva, por sua vez, não lhe sugeriu que fizesse alguma proposta concreta e a pusesse em discussão de acordo com o regulamento, quero dizer, em momento apropriado. 

Claro que os meus amigos elogiaram a estofada e sábia retórica de Santos Silva, até porque deu mesmo uma resposta inútil mas por cima, com muita elegância, sem nunca baixar o nível do discurso. Eu fiquei no mesmo silêncio que me retém nessas ocasiões. O embate retórico merece uma breve análise e, claramente, com poucas palavras, o presidente da AR o venceu. O debate político manteve a pobreza dos debates político-partidários nas democracias de hoje. 

Penso que assistimos a mais uma esperta fuga à realidade, de ambas as partes. Isso, com a falta de coragem para fazer propostas concretas alicerçadas em análises sérias (que eu não tenho competência nem para imaginar), é que fragiliza as democracias europeias, pluripartidárias e multirraciais. Na parte sua, claro. Sintomaticamente elas se deparam com um eleitorado vacilante, instável, indeciso ou shift, migrante, que se deixa enganar e constrói maiorias desorientado, contraditórias umas das outras, ora populistas, ora costumeiras. Esse eleitorado sintomaticamente, para dizer tudo numa palavra, nem sabe em quem votar. Não porque lhe falte o necessário discernimento, mas porque não vê soluções, ou sequer esboços de resoluções práticas, consequentes. 

Voltamos a um problema repetidamente referido aqui: as democracias não se mostram capazes, hoje, de resolver ou minorar os problemas reais dos países. Isso é que dá força a ditadores como Putin. Que não resolvem mas decidem, avançam e, como calam, reprimem, manipulam votos, eleições, eliminam adversários, parece até que estão a resolver alguma coisa. Principalmente quando precisam de invadir outros países...


21.7.22

Situação política ridícula


O ignorante escarnece do parvo, enquanto o pobre coça a cabeça.

19.5.22

Pensamento único e pensamento livre na política mundial

O panorama da política mundial hoje não nos deve surpreender. É verdade que houve uma pausa de anos até que novas forças políticas concentracionárias emergissem e tomassem o poder em alguns países. Infelizmente, assistimos a uma normalidade. Infelizmente, ela não deixa de ser oportuna, num único sentido: os anos de paz amolecem, por isso uma guerra nos torna mais vigilantes. É, porém, desnecessário, pois os países livres têm na liberdade a revigoração das suas forças e, tarde ou cedo, a moleza havia de ser sobressaltada sem guerras. É, no entanto, uma verdade histórica a da recorrência das guerras. 

Os seres humanos guiam-se por padrões e, por isso mesmo, precisam constantemente de experimentar os padrões, para ver até que ponto eles são funcionais. As discussões públicas e livres acerca de posturas, decisão política ou partidária, estratégias internas e externas, experimentam os padrões que regem as sociedades. Porém, podem fazer perigar um poder autoritário, ou que se aferre a normativos ultrapassados, como é o caso de Putin e de Bolsonaro e foi o de Trump. Quando os padrões são postos em causa e o governante já tem todo o seu poder alicerçado neles, então precisa reprimir qualquer discussão. Se a ditadura avança, os que defendem a liberdade recuam para países livres ou começa a guerra. Porém, mesmo que os oposicionistas sejam pacifistas e só recuem para países livres ou atuem com discrição no interior das ditaduras, a guerra tem de começar, para que a ditadura elimine a oposição seja em que país for. Então começa mesmo a guerra inter-nacional, como se fez a nacional: a princípio surda e indireta (quando o ditador tem pouca força ainda), logo ameaçadora, logo direta, armada, esmagadora. Se as democracias agredidas estiverem preparadas militarmente, reagem com vigor e os ditadores são obrigados a recuar. É certo que, se não forem completamente destruídos, apenas fazem recuos estratégicos, como Erdogan para não sair da OTAN (veremos onde isso vai dar desta vez). Estamos neste ponto: uns fazem recuos estratégicos, outro (Putin) arrasa cidades atrás de cidades ("não ficará pedra sobre pedra") para dizer que não recuou. 

O pensamento que se agarra a um padrão e o define como eterno, imutável (por isso indiscutível), é o pensamento único. O pensamento que se põe à prova é o pensamento livre, que opera e se desenvolve pela diversificação e pela experimentação. 

Ao que assistimos hoje, novamente, é à luta entre as democracias e os protagonistas políticos de um pensamento único, autoritário (seja ele qual for), em combate mortal e contínuo contra a possibilidade de diversificação. Se os seguimos, os nossos padrões estarão controlados à partida e, não sendo passíveis de experimentação, nos fazem correr os riscos das sociedades caducas. As ditaduras recentes, ainda vigorosas, não percebem que assinaram o seu atestado de óbito ao se constituírem em ditaduras e agredirem vizinhos. Houve regimes autoritários 'eternos' (o dos faraós, por exemplo), mas eles sofriam revoluções e mudanças internas constantemente e, por vezes, elas conduziam a guerras civis - o que diz tudo. 

Havendo lucidez, sabemos por onde vamos. Havendo coragem, vamos mesmo. 


12.5.22

São os vizinhos da Rússia que pedem para entrar na OTAN

É uma lembrança pertinente, porque muitos tentam passar a versão (russa) de que há um plano expansionista, ofensivo, da NATO para chegar às fronteiras ocidentais das Rússia por todos os lados. Putin usou essa distorção para (também por aí) justificar a invasão e ocupação da Ucrânia - que ainda não conseguiu efetivar, felizmente, no que diz respeito à ocupação.

Note-se, de passagem, que a colonização de toda a Ucrânia seria fundamental para abarcar campos de cereais, espaços estratégicos, controlo dos mares internos, riquezas de subsolo, como também para deixar de pagar a taxa pela passagem do gás. O plano de Putin para ocupar a Ucrânia vem de longe, foi meticulosamente preparado e sistematicamente tentado: começou com a tentativa de colocar e manter na chefia do país um corrupto pró-russo, contra o qual a maioria da população se revoltou. Continuou com a ocupação de territórios ucranianos onde se fala russo (numa operação semelhante - mas mais cautelosa - à dos sudetos 'alemães' com Hitler, que os levava até à Morávia). Depois a ocupação da Crimeia. Agora a ocupação de todo o sul do país para ligar o Donbass à Transnistria. Por fim, e já destruído quase todo o país, era só fechar a tenaz... 

Por força, talvez, da velocidade e voracidade capitalista, sobretudo na imprensa, a memória coletiva ocidental e global encurta e certas falácias passam sem que ninguém pense muito nelas. Quando a URSS acabou, vários países integrantes da NATO discutiram se ainda valia a pena manter a Organização, visto que se extinguira o inimigo comum. Nunca se pôs na mesa a ideia de cercar a Rússia e dar cabo dela, o inimigo estava extinto: era o regime do PCUS. Acabou prevalecendo a ideia de que a organização podia ser reformulada e readaptada aos novos tempos com vantagens para todos. 

Mas vários países da antiga esfera soviética, mantendo viva a memória histórica da atuação da Rússia e da URSS, quiseram passar a fazer parte da Organização, bem como da União Europeia. Quer a NATO quer a UE foram sempre cautelosas e lentas a avaliar os pedidos de integração. Sabiam que não estavam preparadas para uma entrada, de rompante, desses vários países e, também, sabiam que a Rússia tentaria abafar ou neutralizar os países vizinhos sob a desculpa de que a NATO - inimiga da URSS e não da Rússia - era uma organização ainda inimiga, portanto não se podia deixar que chegasse muito perto. 

A recente posição da Finlândia e da Suécia - países habitualmente neutros - o seu pedido de integração na NATO (como já antes a vontade ucraniana de integrar a Organização), não resultaram de nenhum plano de expansão da NATO ou dos EUA, nem de qualquer outro fantasma dos que os soviéticos agitavam para assustar os seus discípulos contra o inimigo. 

Os vizinhos da Rússia conhecem-na, conhecem Putin e sabem que ele encarna ainda o expansionismo soviético e russo. Putin é um conservador em concordata com a igreja e os oligarcas, por isso Orban, M. Le Pen, Bolsonaro, se revêm nele (e procuram constituir uma igreja dominante quando há várias igrejas fortes). Mas o expansionismo que protagoniza, inutilmente, o chefe do Kremlin é uma herança histórica da velha Rússia - que não tem liberdade para resolver ou discutir os seus problemas (outra herança histórica da velha Rússia, o despotismo). 

Não há nenhum plano da NATO ou dos EUA para isolar e aniquilar os russos, nem nenhum plano de Putin para 'libertar' os vizinhos dos 'nazis'. Há só um plano de Putin para anexar os países vizinhos, ou confiscar a sua liberdade, como se fez na Bielorrússia, manipulando um ditador do calibre dele, mas muito fraco de cabeça e falho de personalidade. 


https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/rfi/2022/05/12/finlandia-quer-adesao-sem-demora-a-otan-suecia-tambem-deve-quebrar-neutralidade-militar.htm


Entretanto a Turquia bloqueia a entrada da Suécia e da Finlândia na OTAN. Porquê? Porque abrigam militantes curdos. A lei de Erdogan é a mesma de Putin, isso já sabíamos: eliminar toda a possibilidade de resistência política ou militar, de divergência séria e consequente. Na verdade, os choques entre a Turquia de Erdogan, a União Europeia e a NATO, já vêm de há anos e, prudentemente, os europeus recuaram na possibilidade de adesão da Turquia. Na verdade, Erdogan tem um pé na Europa e Otan, não pela Geografia, nem pela História (o que ligava a Turquia à Europa na História era o contrário do seu fundamentalismo islâmico). O pé firme, porém, está no mundo islâmico. Esse é o seu mundo e é o que ele representa às portas da Europa. 

As suas negaças tornam mais claro e mais difícil o jogo: de um lado, a liberdade, do outro as ditaduras. Erdogan não faria pirraça para que lhe devolvessem opositores se estivesse realmente preocupado com a expansão russa. E devia estar. Ou estará mesmo? Os próximos dias dirão. Porém, mais uma vez, ele mostra que só tem um fito: eliminar opositores e consolidar a sua monarquia islâmica, onde figura como presidente vitalício de facto. Vai haver eleições na Turquia? Também já houve antes... até na Rússia. 




9.5.22

A importância da gravidez


No combate pela superação da desigualdade de oportunidades há tanto para pesquisar hoje que não podemos abarcar tudo. Mas a neurobiologia vem trazendo contributos precisos que deviam talvez orientar mais as políticas de superação das desvantagens dos que nascem quando nascem.

De pouco vale, de facto, avançar umas migalhas à pobreza, que servirão, no máximo, para aliviar momentaneamente esta ou aquela família ou pessoa. Leia-se a notícia desta pesquisa:


Quer ela dizer que ficam desde logo (à nascença) condenadas certas pessoas pela falta de condições da mãe e do feto ao longo da gravidez. A notícia é grave. Leia-se o resumo:

Infants born to mothers living in poverty have smaller volumes of gray and white matter across the entire brain. Additionally, babies born to mothers who live in high crime areas showed differences in brain activity to those whose mothers lived in safer areas. Those born to mothers who experienced crime had weaker neural connections between brain areas that control and process emotions. Maternal stress, researchers say, could be a main factor in the differences in neuroanatomy and brain connectivity.

A própria e futura redução da criminalidade pode passar uma superação das dificuldades das mães vivendo nessas situações. A política de combate à pobreza e à desigualdade de oportunidades (iguais mesmo nunca somos) havia de começar por considerar todas as mulheres grávidas como se fossem doentes em cuidados especiais. É preciso criar condições para acompanhá-las, assegurar-lhes alimentação conveniente e controlada, assim como criar centros de grávidas para as mulheres que vivem em zonas de criminalidade, centros com aposentos para dormirem com os maridos ali. Claro que sempre haveria casos difíceis ou impossíveis, por exemplo aqueles em que o próprio marido é criminoso. Nesses casos as mulheres deviam ficar isoladas nos centros de gravidez e os maridos as visitariam cumprindo um código de comportamento que assinavam. Claro também que as mulheres que não precisassem disso não deviam recorrer a tais serviços. Assim, muitos mais fetos teriam um desenvolvimento normal e saudável. A humanidade iria dar um salto qualitativo e gigante no seu desenvolvimento harmonioso, que se começaria a notar em cerca de duas décadas.

8.5.22

Lembrança rápida em Azvostal

Lembram-se do Pacto Germano-soviético? A URSS não combateu os nazis, defendeu-se da Alemanha quando esta a invadiu e foi aliada dos alemães até isso acontecer. Hoje a Rússia invade outro país e diz que vai combater nazis. Ainda há quem acredite nisso. Acreditar nisso já não é ingenuidade, é colaboração com o inimigo.


10.3.22

Provável origem russa de perfis 'ocidentais' pró-Putin


A guerra na Ucrânia, sob ataque russo com as mesmas táticas que Putin usou na Síria, continua. A resistência ucraniana (e euro-americana) dura mais do que se pensou. Caso haja dinheiro para isso (apesar das turbulências das sanções, que também afetam os mercados sancionadores), a Ucrânia continuará resistindo, segundo parece, até ao último homem ou nem chegará ao último homem.

O que me traz aqui é outro aspeto. Putin aproveitou para cortar as redes sociais mundiais, isolando completamente os russos, e estas redes também queriam cortar a propaganda tortuosa, as distorções argumentativas (por exemplo: povos que têm a mesma origem devem viver sob o mesmo domínio, o do mais forte entre os da origem comum) e narrativas (exemplo de uma narração distorcida: russos e ucranianos são o mesmo povo. Quais russos? Os da Sibéria?) promovidas pelos russos para confundir 'o Ocidente'. 

Não sei se repararam mas os conteúdos distorcidos e retorcidos que circulavam pelas redes sociais são agora em muito menor número e são também muito menos os perfis que as acolhem e divulgam. Ou seja: muita dessa propaganda pró-russa tinha mesmo origem na Rússia. É um bom momento para se descobrirem, denunciarem e eliminarem perfis falsos desse lado do mundo. Quanto aos idiotas úteis, serão sempre úteis e idiotas e viverão sempre à custa de quem lhes sustenta a liberdade necessária para serem burros ou cínicos.

25.2.22

Anti-putinesca

Como era de se esperar, Putin ocupa a Ucrânia, que já vinha comendo aos pedaços há vários anos. Assim adia a falência da nova URSS por mais um tempo, mas fez uma guerra muito cara (a Síria, a Venezuela, o Mali, a Centro-Africana ficaram mais baratos e mais longe e darão bom lucro). Entretanto se joga na batalha da Ucrânia muito mais que a independência desse país: é a liberdade europeia e no mundo que está em jogo. 

O que é espantoso é ver que, mais uma vez, a 'opinião pública' em geral andava completamente baralhada (nos mais diversos quadrantes), deixando-se tocar por argumentos falaciosos, paralogismos e completas mentiras num jogo que o ditador russo domina desde os tempos da URSS. Intoxicada já com discursos autodestrutivos em nome de uma hipercorreção moral e política de fantasmas e de passados, fragilizada pelas fragmentações que tais discursos promovem através de grupos de pressão agressivos e repressivos, à esquerda e à direita, mostrando-se incapaz de competir com a agilidade russa (e norte-americana) na internet, a Europa livre não tem tido capacidade de resposta e vem somando fracassos internacionais a nível económico, político, militar. Os menininhos saídos das escolas de formação política sem qualquer experiência da vida vão, literalmente, azeitando o rabinho para não doer muito.

Perante isso, a aliança anti-democrática mundial, orientando-se por simples cálculos de causa-efeito (como faziam também antes os EUA), esmagando quem falha e quem não concorda, limitando-se a fazer contas e destruir prejuízos, apresenta-se hoje como a sequência vitalizada do antigo 'mundo comunista', unida somente em torno da defesa das ditaduras. Se as democracias não se assumem na eficácia da sua defesa, estão perdidas. O caminho é duro, mas incontornável: 

1) neutralizar internamente as forças que as corroem: 

    a) pela ação política, pelo argumento, obrigando a debates abertos os grupos opostos à democracia, sem possibilidade de manipulação de assembleias (debates na tv, por exemplo, apenas entre os intervenientes e com os telespectadores enviando perguntas por mensagens escritas); 

    b) por ação administrativa não financiando projetos culturais ou científicos que defendam soluções antidemocráticas na sua fundamentação e argumentação;

 2) preparando quadros por experiência de vida e não só pela formação académica, tendo os nomeados para funções públicas, necessariamente, que possuir provas conhecidas de eficácia em algum setor de atividade;

 3) exigindo-se uma governação mais consequente, penalização (por perda de elegibilidade por escolha popular ou por nomeação) de políticos que promovam publicidade enganosa (por exemplo não cumprindo promessas eleitorais que tinham condições para cumprir) e eliminando efetivamente bolsas de pobreza ou de marginalização; 

 4) aprofundando o sistema de representação de maneira a tornar o poder mais próximo das populações representadas; 

 5) dizendo diretamente a quem as quer destruir (ao defender soluções ditatoriais, repressivas, censuras, saneamentos ideológico-partidários, racistas, segregacionistas) que isso é intolerável e, portanto, que, não sendo objeto de repressão, não poderão tais pessoas beneficiar dos empregos e benesses do Estado que pretendem destruir;

  6) assumindo que a emigração, tal como se vem praticando ou admitindo, não pode prosseguir (sem prejuízo dos emigrantes legalizados até agora) porque não tem viabilidade económica. Nesse campo, propondo às comunidades divergentes (ciganos, etnias e emigrantes que não se pretendam integrar no conjunto nacional, nómades, alternativos) um pacto de convivência que assegure espaços regidos por regras próprias, exceto no que diga respeito ao policiamento, à submissão ao poder autárquico respetivo, ao pagamento de taxas iguais às dos outros cidadãos, às operações de saúde e de higiene ambiental. As regras de relacionamento entre comunidades específicas e comunidade nacional, num pacto desse tipo, estabelecem-se pelos princípios de justiça da comunidade nacional, pois não se pode rejeitar a maioria em nome da minoria.


Alinhavadas estas notas para uma hipotética discussão, me pergunto: qual o político democrático disposto a assumir as verdades que elas implicam e a justeza do mal-estar da maioria das populações? Macron quis perfilar-se nesse horizonte, mas revelou-se outro fracasso, sem coragem nem frontalidade, para além de ingénuo nas relações internacionais. Há mais candidatos credíveis? 


https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/02/25/russia-e-expulsa-do-conselho-da-europa-diz-ministro-italiano.htm

Para recordar a Revolução da Dignidade de 2014, um artigo equilibrado da BBCnews Brasil, publicado em 23 janeiro desse ano.

Já depois de escrita esta mensagem, recebi de um amigo uma "análise equilibrada", "muito bem escrita", etc., assinada por um historiador brasileiro, penso que professor na USP. Retoricamente é uma peça sintomática: sem qualquer sentido de equilíbrio ou de estratégia retórica entra logo dizendo que a culpa da guerra na Ucrânia é da responsabilidade de Joe Biden por querer alargar a NATO. Assim, na primeira frase. Depois nos convida: "mas vamos ao factos". Ora, ao que vamos é a alguns factos distorcidos e outros não distorcidos, todos comentados para guiar o nosso pensamento na direção da acusação inicial. No fim do historial devidamente comentado, quando refere a URSS e a Ucrânia, ou os problemas com a Ucrânia e na Ucrânia quando se formou a URSS, limita-se a dizer que ela reestruturou essa região, passando um pano branco sobre factos gravíssimos que mais animosidade ainda trouxeram, até hoje, aos ucranianos relativamente ao que vem da Rússia. Parece a estrutura retórica típica de um poder instituído e não discutível, por exemplo o da igreja institucional no tempo da Inquisição. Nesses momentos, claro, os textos começam todos por reiterar a opinião verdadeiramente dominante (ali era só a que se pretende dominante) e em seguida vão desfilando argumentos que servem somente para os que já acreditam e seguem as mesmas opções religiosas. Isso é muito esclarecedor acerca da mentalidade com que se escreve tais textos.


7.2.22

África no mundo e as imposturas identitárias


África no mundo – livre das imposturas identitárias é a edição portuguesa [1] de um livro a sair proximamente no Brasil também, já ampliado e, em alguns pontos, pensado para a realidade quase continental desse país irmão (porque não havia de ser um país irmão?).

O seu autor, Jonuel Gonçalves, é um veterano da pesquisa em economia internacional, com particular incidência em África, e atuação no jornalismo (nota-se no seu estilo) e na ação combativa no sentido, primeiro, da independência de Angola, depois, da democratização do país. A sua pesquisa para o doutorado (UFRRJ, 2003), sobre a água de ponto de vista econômico, comparava trechos do Cunene com o Uruguai (Luanda: Nzila, 2004), marcando já a índole comparativa e africanista da sua reflexão. Estudou em França, no Senegal, na África do Sul e no Brasil, viveu nesses países e em Portugal também, onde ainda exerce jornalismo (à distância) e pesquisou sobre países do hemisfério sul, principalmente em África e na América do Sul. A sua principal área de pesquisa é a económica, mas hoje percebemos ainda (por enquanto) que as áreas científicas não são estanques e, portanto, ele se debruça também sobre questões sociais, além de escrever romances e perceber, assim, os mecanismos literários em sua articulação com a realidade histórica, pessoal e social. O campo de incidência é o continente africano, principalmente ao sul do Saara.

Para ler este livro convém ter presente o percurso do autor. Ele não se dirige a este ou aquele público específico, muito menos a claques. Ele situa-se numa plataforma universal ubicada em África e, portanto, se dirige para todos, mostra conhecer a receção e a situação de vários países e dialoga com intelectuais e leitores de vários países.


O subtítulo do livro é “livre das imposturas identitárias” e a principal impostura identitária é a do racismo. Nota-se frequentemente uma generalização de um caso específico para a definição de racismo usada em clichês, polémicas, manifestos, textos de propaganda. Essa prática transforma um dos exemplos históricos em base única para a definição geral, ou seja, reduz a definição geral a um dos casos que a ilustram. Esse pressuposto é a base geral para a legitimação do negacionismo do racismo e suprematismo 'negro'. A resposta a esse raciocínio desleal é muitas vezes uma resposta parecida, na medida em que também se foca nos casos específicos. O presente livro tem a vantagem de jogar com os casos específicos comparando-os, contrastando-os e, sobretudo, confrontando-os com realidades gerais (humanas) ou globais (que surgem em todo o globo). É bom exemplo disso o resumido historial da negritude feito no livro (pp. 32-35), saltando-se daí para Appiah e Mbembe, Obama e Richard T. Ford. Fá-lo com agilidade mas não levianamente, colocando sempre os pontos nos iis.

África no mundo, apesar da incidência especial no continente-berço, é uma análise da atualidade global que nos traz exemplos de todos os continentes e confronta-os, sobretudo, do hemisfério sul africano e americano. Quando o jornalista nos desmonta as armadilhas, os discursos de separação, os mecanismos de disfarce (títulos de algumas secções do livro), ele mostra que eles têm paralelo e meridiano em todo o planeta. Assim, por exemplo, fala da xenofobia devida ao aumento da imigração sem esquecer o caso sul-africano, quando habitualmente pensamos na xenofobia europeia ou norte-americana apenas. A xenofobia sul-africana tem sido objeto de crítica por parte de outros intelectuais africanos, entre eles se destacando Achille Mbembe. Uma das artimanhas que o autor insiste em desmontar, com toda a razão, é a de se manter numa zona de conforto – a dos implícito inquestionáveis – certos países, regimes, sistemas e definições étnicas. Os contrastes e semelhanças encontrados dentro de cada grupo (contrastes) e entre vários grupos (semelhanças) desdizem, precisamente, a redução dos problemas à localização no mapa identitário ou mesmo físico, escondendo-se que os mesmos problemas existem e existiram em espaços e tempos contraditórios. É o caso, também, das ameaças à democracia.

 

Uma das ameaças à democracia vem da criminalidade galopante. As eleições brasileiras de 2018 foram claro exemplo disso, de como a criminalidade serviu de motivo para legitimar uma aspiração ditatorial. Podia se falar também de Angola, país onde, em 1992, o aumento da criminalidade (alguns disseram que provocado artificialmente) legitimou a criação de uma força policial especial que distorcia os acordos alcançados entre os partidos beligerantes, pois integrava na prática apenas policiais do lado governamental. O combate à criminalidade em Luanda, nesse tempo, serviu para que essas forças especiais (e outras) fossem reprimindo aos poucos a liberdade que se viveu muito brevemente, inibindo a deslocação para certos locais, controlando essas deslocações através de pontos de controlo que serviam para outras arbitrariedades e até para ‘pentear’ (sacar dinheiro) os cidadãos motorizados. Um contraexemplo vem do Brasil do século XIX e envolve um angolano (segundo a jurisdição angolana de hoje, ele seria cidadão angolano caso o país estivesse independente). O que relaciona Eusébio de Queirós com Angola não é só o nascimento em Luanda, como por vezes se tenta fazer crer e o caso vem a propósito para desmontarmos uma armadilha mais. 

Ele não nasceu lá porque o pai era lá juiz e o pai não nasceu lá porque o pai dele foi lá juiz. Assim, contudo, apresentaram a sua relação com Angola já mais do que uma vez. Olhemos a história com detalhe. Domingos Plácido da Silva foi para Angola como degredado político e foi lá juiz. Mas o importante é que se casou com uma senhora de uma das mais antigas famílias da Luanda colonial, uma família que se formou nos meados do séc. XVII e que, pela parte exógena, vinha dos Açores e da região do Porto e, pela componente local, era de Luanda. Essa família mista residiu sempre em Luanda (esporadicamente em Benguela, em razão de cargos) e gerou também o primeiro poeta angolano a publicar um livro, José da Silva Maia Ferreira, cuja mãe era familiar muito próxima de Eusébio de Queirós, por duas vias ou dois ramos (em modo simples: eram primos por consanguinidade e por afinidade). Essa família incluía militares e comerciantes (em geral andavam juntas as duas ocupações), juízes, padres, altos funcionários públicos. O casamento de Domingos Plácido da Silva insere o seu filho, Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, numa rede familiar angolense típica, mantida aliás na linha autonomista no século XIX e, mais tarde, apoiando a luta pela independência (por exemplo a partir de um descendente residente em Paris). É dessa família, cujo ramo Queirós Coutinho sai para o Brasil em 1815, que vem o ministro conservador autor da famosa ‘Lei da Princesa Isabel’. Reduzi-la à ida para Angola, como juízes, do pai e do avô do ministro é deformar a sua verdadeira face, bem mais complexa e diversificada.

Muitas vezes, em complemento, se procura diminuir a importância da rápida progressão do saquarema luandense às relações sociais do pai. Sem dúvida que isso contribuiu, como de resto era o comum naquela sociedade (e ainda hoje é muito comum). Porém, não se menciona que ele, tendo feito parte da primeira turma dos Estudos Jurídicos de Olinda, foi o primeiro a terminar o Curso, com média muito alta e rasgados elogios. A sua bibliografia de estudante acabou sendo mencionada, parcialmente, nas páginas do Diário de Pernambuco, através de anúncios e demonstra que não tínhamos aí um filhinho de papai, mas um jovem seriamente interessado na profissão e na discussão político-jurídica do seu tempo. Também as relações sociais do pai terão contribuído para a precoce nomeação como Juiz de Direito Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, mas isso não diminui em nada a sua atuação, decisiva e brilhante, de que deu conta em relatório que me fez trazer aqui o seu exemplo. É que ele conseguiu reduzir a criminalidade no Rio sem recorrer a muita repressão (que reforçou no que diz respeito a vagabundos e mendicantes), antes atuando socialmente (pela integração de marginais no corpo da polícia, sob orientação e controlo rigorosos), incidindo sobre estrangeiros também, melhorando a segurança e condições das cadeias e agilizando os processos e julgamentos. Assim nos mostrou, querendo ou sem querer, que é possível combater a criminalidade sem apelar ao recurso excessivo da força, que muitas vezes experimenta ambições ditatoriais. Ora, é disso mesmo que fala Jonuel Gonçalves, outro angolano com origens europeias. A criminalidade não justifica as ditaduras, a repressão, os excessos policiais.

 

As ondas relativistas das últimas décadas apropriam-se de tudo: conceitos, teorias, palavras-chave (ou palavras-chaves), campos de estudo, áreas disciplinares nas universidades. Aplicam o mesmo discurso a tudo, recolhendo alguma frase dos textos comentados como ‘prova’ do que dizem, deitam tudo ao chão numa política de terra queimada, não chegam a ler ou comentar obras do princípio ao fim (no geral), exterminadores implacáveis de todo o resquício de mal com uma prática de grandes aspiradores de lixos residuais. E nada fica vivo no terreno. O próprio exterminador evola-se (ou sobe aos céus que desmontou), quando muito escutando ainda aquela musiquinha chamada enola gay. De sinal contrário, Jonuel Gonçalves tem uma proposta construtiva: ao mesmo tempo em que desmonta clichês e imposturas, propõe valores e estratégias de desenvolvimento. Não propõe valores no vazio, sobre a terra queimada. Procura valores humanos, mostrando como no terreno eles podem ser operativos.

A defesa da liberdade contra o autoritarismo atravessa o livro todo e vai desmontando falsas dicotomias, usadas por relativistas. Ele baseia-se em dicotomias integradoras visando eliminar essas falsas dicotomias. Por exemplo “estalinista e salazarista” (falsa dicotomia, pois são o mesmo – regimes autoritários) a que se opõem regimes onde as pessoas são livres (a verdadeira dicotomia: liberdade ou autoritarismo). A verdadeira dicotomia remete, novamente, ao universal: liberdade-opressão, por ex., com citação de um título de Amartya Sen (O desenvolvimento como liberdade).

Várias passagens nos recordam que a legitimação das ditaduras e dos populismos, especialmente em África e no ‘terceiro mundo’, está justamente no uso das imposturas identitárias e das falsas dicotomias (por exemplo rácicas, étnicas – sendo sugestivo o caso venezuelano, que não vem referido no livro, pois não cabe tudo em 114 páginas). O autor contrapõe aos autoritarismos, sejam vermelhos ou negros, a liberdade como valor universal, a democracia como proposta política exequível em todo o mundo e necessária ao desenvolvimento económico e social sustentável.

A liberdade como valor universal é muitas vezes combatida alegando-se que esse conceito (nomeado por uma palavra etimologicamente significativa), como também democracia, não está de acordo com os ‘nossos valores’. Isso depende de como olhamos para várias tradições, nas quais, a par da autoridade suprema e definitiva do chefe, encontramos instituições como a da palabre ou a da maka, situações em que as pessoas argumentam livremente (antes da tomada de decisão do chefe). Mas o autor não perde tempo discutindo cada particularidade, ele avança com o argumento decisivo: também nos atuais países democráticos a democracia não estava de acordo ‘com as nossas tradições’, absolutistas como se sabe.

Da mesma forma ele desmonta as tentativas de impugnar a conotação entre democracia e desenvolvimento. Tem havido autores que procuram impugnar essa conotação, geralmente obliterando circunstâncias histórico-sociais que desvirtuavam o começo de uma democracia, como sucedeu na Rússia depois de Gorbachev. Porém, as relações entre liberdades e desenvolvimento são patentes em todos os continentes e, simetricamente, as relações entre regimes autoritários e falta de desenvolvimento. Por vezes avança-se com o exemplo chinês, ou o de Myanmar, ou o de Cingapura, ou o da Indonésia, que no entanto se desenvolveram com liberdade económica e respeito pela propriedade privada (mais ameaçado, esse respeito, só na China). Tirando o microexemplo de Singapura, cuja ‘solução’ menos democrática se fundamentou em consensos sociais e no reconhecimento da existência e dos direitos de vários grupos ‘étnicos’, em todos os outros é muito evidente que o chamado desenvolvimento se alicerçou nos investimentos estatais (caso da China), na importância dos negócios das Forças Armadas que dominam o Estado e formam conglomerados empresariais (caso de Myanmar sobretudo) e num misto disso com generalizadas liberdades (económica, religiosa, associativa), como na Indonésia, que não foi sempre uma ditadura e não é nenhum exemplo de desenvolvimento. 

Em todos esses casos o crescimento económico não foi acompanhado por um crescimento salarial e do bem-estar das populações. As assimetrias entre ricos (ou bem instalados, chamem-lhes o que preferirem) e pobres aumentaram. A saúde ambiental piorou assustadoramente. Portanto: não se deu desenvolvimento, o que se deu foi crescimento de negócios, apadrinhados via Estado e de contornos escusos ou de financiamento forçado pelo artifício dos investimentos estatais. Há uma aparência de desenvolvimento, alicerçada na liberdade económica, mas, acabando-se o papel do Estado ou das Forças Armadas e da corrupção, nota-se que o desenvolvimento era mantido artificialmente e beneficiava uma escassa percentagem da população. Não se pode chamar a isso desenvolvimento. O caso da Rússia é, aliás, exemplar: a sua situação económica, num ambiente de negócios controlado pelo Estado e por uma oligarquia apoiada pelo Estado, é frágil, apesar das anexações e dos contratos abusivos em que países ou pseudo-países importam da Rússia a preços muito acima do mercado ou no nível mais alto do mercado (viu-se, em alguns países, no caso das vacinas anti-Covid, em que o preço altíssimo não foi devido a uma eficácia garantida superior à das outras vacinas – e Angola entra como exemplo recente).

Jonuel Gonçalves usa outras referências, mas não se fica por aí. Como economista que é, especifica, principalmente para o caso africano, estratégias político-económicas concretas: “a superação do extrativismo e a implementação de cadeias agroalimentares” (p. 112 e última), proposta que pressupõe o reforço ou a recuperação da saúde ambiental. A aplicação de tais estratégias pressupõe mecanismos de controlo social (sobre a ação governamental ou simplesmente empresarial) que se referenciam pelos conceitos de liberdade e democracia (como por exemplo: o direito à greve, a independência do poder judicial, a isenção das policias e das forças armadas, uma imprensa inteiramente livre, eleições realmente representativas).


As desmontagens e as propostas não se fazem sem referências teóricas. Acompanha-se – com posturas próprias – de autores com os quais discute de igual para igual (embora num ensaio curto, despretensioso), Achille Mbembe, Stanislas Adotevi, Amartya Sen, Richard T. Ford e outros(as).

Também não o faz sem dados estatísticos e números significativos, recolhidos em fontes fiáveis, ou que permitem deduzir uma probabilidade confiável (e mesmo por isso falham dados africanos, relativos a países onde não conseguimos obter estatísticas sérias, ou quaisquer estatísticas). É com tal armamento que se propõe “debater vias de pensamento e ação para África se inserir no mundo sem subalternidades.” (p. 11) Porque um dos objetivos da desmontagem das imposturas identitárias é, precisamente, o de colocar os africanos em diálogo direto, sem contemplações, com o resto do mundo e consigo próprios, com a sua realidade atual (há outra?).

As conclusões a que chega e os raciocínios com que opera servem, pela preocupação com uma validade universal, outros campos culturais em várias semiosferas. A constatação geral de que “todas as civilizações foram produzidas por adição de parcelas” é um dos exemplos, devendo-se a isso (também) o desenvolvimento respetivo, por “suas capacidades de absorção e integração desses aportes.” (p. 19)

 

Se olharmos para as literaturas observamos o mesmo. Em primeiro lugar, que nunca nenhuma surgiu sozinha. Derivaram umas de outras e receberam tributos umas das outras – mesmo quando vinham de espaços políticos opostos. Em segundo lugar, que o seu desenvolvimento e a sua globalização (refiro-me mesmo à entrada em um circuito global dos mercados do livro) se fazem pela “absorção e integração desses aportes.” Foi, continua a ser, um dos garantes da globalização das novas literaturas africanas a diáspora intelectual e académica africana, com sua correspondente (e simétrica) absorção de ‘modos de fazer’ e de ler em circulação nos mercados principais ou canónicos (permita-se a extensão do conceito). O seu sucesso deriva de juntarem a tais saberes e fazeres uma africanidade, ou seja, uma originalidade que surpreende a sonolência das expetativas esgotadas, ou seja, dos cânones consagrados.

Ainda relacionando com as literaturas, as propostas do economista e político Jonuel Gonçalves, relativas à circulação de pessoas (e principalmente na CPLP), devem ser acompanhadas por idênticas (e adaptadas) propostas para a circulação dos livros, dos escritores e dos leitores. Ela ficou facilitada pelo funcionamento de uma rede mundial, da internet, mas não deixa de ser necessária a vivência no país do outro sem pesadelos burocráticos e sem corrupções para concessão de vistos e transporte de produtos culturais.

Também neste campo, é de notar como funcionam as fórmulas identitaristas. Elas reconduzem-nos ao papel passivo da literatura militante que, em vez de explorar na linguagem novas conexões, experimentar pelas intrigas novas hipóteses de leitura político-social, servem o fim de propaganda previamente estabelecido pela clique ou pela claque. Essa literatura de clique-claque nos afasta da percepção do modo de fazer e de ler típico de várias comunidades e, no geral, da semiosfera banto. A crioulização da semiosfera banto com a literatura globalizada produziu efeitos novos, ou renovados, avivando a forma de compor, a agilidade na metaforização (tradicionalmente codificada e conservadora), e trazendo-nos assim uma prática literária que, também ela, põe África no mundo sem subalternidades. O mesmo sucede com a música há muitas décadas. Ao contrário, dentro e fora dos países da África negra, a literatura militante dos identitários repôs uma poética internacionalista, meramente discursiva, panfletária, que vemos repetir-se em todo o mundo com a única mudança de motivos pouco mais que geográficos para dar a ‘cor local’.



[1] Lisboa: Guerra & Paz, 2020. 

19.1.22

Negação do racismo 'negro' - pressupostos falsos, tentações repressoras e as câmaras de gás


As reações inconsistentes a um texto de António Risério demonstram bem, não necessariamente as suas razões, mas o clima político-partidário que as motiva. E mostram, sobretudo, que o racismo 'negro' se baseia numa sucessão de clichês assentes em pressupostos falsos. O que faço aqui é, com breves frases também, desmontar a falsidade e os pressupostos, em vez de rebater lugares-comuns autoritários com outros lugares-comuns candidatos a autoritários, igualmente baseados em suposições falsas (os que levaram Bolsonaro ao poder).

Escolho citações do twitter:

"Não existe racismo reverso. Racismo é sistema de poder - econômico, jurídico, midiático, social, físico - fundado na ideia de que não somos humanos. Nunca houve no Brasil negros com poder oprimindo brancos. Afirmar o contrário, com anedotas, é desonesto na medida em que é cruel."

(Thiago Amparo)

"Branco não é perseguido em lojas, não é espancado pela polícia, não perde vaga de emprego só por ser branco.

Não existe um sistema que beneficie o negro diante do branco."

(Pedro Duarte)


"O racismo é um sistema de divisão por meio da categoria de raça, de poder, estrutural, manifestado historicamente, do qual herdamos um conjunto de práticas sociais, políticas, jurídicas, institucionais, que são responsáveis por discriminar, estereotipar"

(Jonas di Andrade)


"A base do racismo são relações de poder pautadas na raça. Relações que se construíram historicamente com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna. Por isso, negros são os mais pobres, os que mais morrem de violência policial e tem menos acesso a oportunidades"

(Vitória Damasceno)


1. Como facilmente se nota, há uma generalização de um caso específico para a definição de racismo usada nestas citações, que transforma um dos exemplos históricos em base única para a definição geral, ou seja, reduz a definição geral a um dos casos que a ilustram. Esse pressuposto é a base geral para a legitimação do negacionismo do racismo e suprematismo 'negro'.

2. Há um segundo pressuposto, mais escondido: não se discute a falta de fundamento do conceito de raça para criticar o racismo, fala-se apenas desse caso histórico e localizável. Isto porquê? Precisamente porque, reduzida a questão ao caso, deixa-se aberta a porta para o racismo compensador, a discriminação 'positiva' e continua-se a usar um falso conceito (o de raça) para discriminar - agora em sentido contrário e satisfazendo pautas partidárias também. Vamos às citações:

3. "Racismo é sistema de poder - econômico, jurídico, midiático, social, físico." Não, racismo é a discriminação de uma pessoa por outra em razão de diferenças físicas socialmente construídas e preconceituosas. Baseia-se em generalizações abusivas e não constitui, necessariamente, um "sistema de poder". É por isso que vimos racismos de reação, reversos, dentro do próprio colonialismo, não por resistência, mas por uso do mesmo erro conceptual rentabilizado pelo esclavagista.

4. "fundado na ideia de que não somos humanos". Não, fundado na ideia de que os outros (os que não fazem parte do nosso grupo) são menos humanos ou não são sequer humanos. Os outros. É por isso que muitos povos intitulam-se a si próprios como 'homens' e aos outros dão nomes depreciativos, como 'bárbaros' (os que não sabem falar; cuja língua está cheia de 'bar' 'bar' - ou seja, os que se chamavam berberes, palavra que tem a mesma origem de bárbaros). Exemplo de povos que se intitulam 'os homens' e, portanto, não consideram que os outros homens sejam propriamente humanos: ba-ntus, literalmente os-homens. Ki-mbundu são homens, povos; u-mbundu são homens, povos; os outros, por exemplo khói e san, povos pré-bantos, são designados pelos seus vizinhos bantos com termos depreciativos - o que as autoridades coloniais aproveitaram para designar também esses povos.

5. "Afirmar o contrário, com anedotas, é desonesto". Casos não são anedotas e, perante afirmações genéricas, um só caso pode desmentir a afirmação (as senhoras da Bahia, por exemplo, têm mesmo paralelos na costa ocidental africana, incluindo em espaços coloniais portugueses, como é o conhecido caso das bessanganas e em ambos os casos nos levam a repensar o quadro social tenso e complexo no qual se afirmaram como sujeitos ativos apesar de inicialmente discriminadas). Houve casos inversos, sim, e a sua pertinência vem de desmentirem essa colagem entre a definição geral de racismo e um caso concreto, histórico, de racismo contra povos 'negros' escravizados.

6. "é desonesto na medida em que é cruel" - isto mostra o tipo de raciocínio que anima estas disputas e estes movimentos sociais. Atira-se com clichês consagrados pelas nossas tribos para conclamá-las à "resistência" (leia-se: destruição pública de quem pensa de outra forma) e recorre-se aos clichês exclusivamente por esse efeito imediato nas tropas. Nem se repara na total falta de lógica ou rigor. Na verdade, o "cruel" não define a "desonestidade", ninguém é "desonesto na medida em que é cruel". Essas categorias andam baralhadas. Um homem, infelizmente, pode ser honesto e ser cruel. Por exemplo: não mente, não é corrupto, não rouba, mas também tem preconceitos e, por eles, prejudica alguns dos 'outros' - os tais menos humanos que nós - não os apoiando, fechando-lhes portas, mantendo-os escravos. Estranho? Próprio do colonialismo europeu? Não. Alguns e algumas das pessoas que reagem com estes comentários serão honestas, porém profundamente cruéis quando não distinguem o 'branco' do racista.

7. "Branco não é perseguido em lojas, não é espancado pela polícia, não perde vsga [vaga] de emprego só por ser branco.

Não existe um sistema que beneficie o negro diante do branco."

Existe, sim. Por exemplo na África 'negra'. E não só, também em vários países asiáticos no que diz respeito às relações entre asiáticos e europeus.

8. Estes falsos pressupostos se resumem e concentram nesta afirmação: "O racismo é um sistema de divisão por meio da categoria de raça, de poder, estrutural, manifestado historicamente, do qual herdamos um conjunto de práticas sociais, políticas, jurídicas, institucionais, que são responsáveis por discriminar, estereotipar". Um resumo das teses que legitimam o suprematismo 'negro'.

Explico por que não me parece verdade. Essa "divisão por meio da categoria de raça" existiu e existe, infelizmente, nos cinco continentes, protagonizada pelas mais variadas populações que se consideram 'raças', umas oprimidas, outras opressoras. Um caso histórico típico de uma "raça" subjugada (portanto sem poder) que não deixou de manter-se separada, não deixou de racializar e de excluir os outros grupos, foi o dos judeus em cativeiro.

9. Resumo final da confusão de um exemplo histórico de racismo da classe dominante com a definição geral e universal de racismo: "A base do racismo são relações de poder pautadas na raça. Relações que se construíram historicamente com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna. Por isso, negros são os mais pobres, os que mais morrem de violência policial e tem menos acesso a oportunidades". O racismo vem só do conceito de "raça", grupo, etnia e da necessidade arcaica de separar mentalmente e socialmente os grupos para assegurar a reprodução dentro do grupo. O racismo pode ser usado pelo poder ou pelo oprimido, como já mostrei. A base do racismo parece-me, portanto, que são simplesmente relações humanas baseadas no conceito de 'raça'. Não se construiu historicamente só "com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna". Isso, aliás, resulta da própria colonização e ocupação do território de outro, independentemente da cor da pele: alguém invade e ocupa a casa do vizinho para se colocar a si próprio em lugar subalterno? Por isso, a invasão ou colonização do território de uma etnia ou chefia vizinha, ainda que tenham todos a mesma cor de pele, resulta em subalternização do vencido, que muitas vezes se traduz em escravização do derrotado e toda a família.

As afirmações que procuro desmontar, taxativas, reiterando apenas o 'já dito' para dizer-nos que é proibido negá-lo, mostram com maior clareza o seu cariz repressivo em outras afirmações, como esta:

"Não adianta ter editoria de diversidade, ombudsman e programa de treinamento voltado a profissionais negros se nas páginas do jornal ainda há espaço para aberrações em forma de texto que defendem a ideia estapafúrdia de racismo reverso.

Mais do que lamentável, é vergonhoso."

Portanto, quem afirma o que - por exemplo - Risério diz, deve ser remetido ao silêncio, ao desprezo, por necessariamente "estapafúrdio", aberrante. Ora, se o que o outro nos contradiz é "estapafúrdio", "aberração", está fora da racionalidade e, portanto, a negação do racismo 'negro' está fora daquilo que define o ser humano: um ser racional. Voltamos, por esta via, às primeiras e primárias manifestações de racismo: os outros não são humanos, ou são menos humanos. O que a mim me repugna não é a relativização da mágoa nem da revolta 'negra' ou 'preta', o que a mim me repugna é a continuação das tentações totalitárias a partir de reivindicações identitárias e da manipulação das vítimas dos racismos. O mal do racismo é o racismo, seja quem seja a vítima e em qualquer exemplo histórico: as câmaras de gás estão na nossa memória para comprovar isso mesmo.

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Surgiram, entretanto, as mais variadas reações, de apoio, de repúdio, de reação do próprio ofendido (Risério, no facebook), na sequência do seu texto, que ativou o botãozinho automático típico dos fanatizados. Tudo somente confirmações, entre as quais a carta de repúdio de jornalistas da Folha de São Paulo. Uma carta que demonstra bem o cinismo com que esse grupo de jornalistas atua.

Não perderei tempo a comentar, já disse o que tinha para dizer. Apenas observo que a tentativa de calar uma interpretação diferente se legitima em nome de "uma Folha mais plural". Aqui se regista a mesma falsidade de raciocínio de que já falei, pois silenciar alguém é o contrário de aumentar a pluralidade de opiniões, não pode portanto legitimar-se em nome dessa pluralidade que está a negar. 

Aqui fica somente o meu testemunho, pois cancelei a subscrição da Folha (processo difícil, em que somos psicologicamente violados, torturados, quase obrigados a reconsiderar, através de uma pressão telefónica digna de Kafka). Faz meses que anulei a assinatura e, precisamente, pela pobreza em que a secção cultural caiu, sobretudo na Ilustríssima. Todos os textos vão no mesmo sentido, os temas são sempre os mesmos e o leque de autores é determinado pela mesma monotonia ideológica. Isso resultou no que resulta sempre: uma pobreza de conteúdos provocando um desinteresse total. A gente só precisa espreitar a imagem, a primeira linha, o título ou subtítulo, nem precisamos de ler o primeiro parágrafo ou as caixas de destaque. Sabemos logo tudo o que vem a seguir e, de vez em quando, para confirmar, eu lia: meras repetições de clichês enfileiravam-se na listagem retórica e sofística das exaltações do único reverso...

Nem direi que faço votos para que tais jornalistas aprendam com a polémica. Ela lhes mostra que o seu domínio sobre a produção cultural brasileira está próximo do fim, avolumando-se o número de vozes - diversas - de pessoas com coragem para enfrentarem a falsificação promovida pelo "viés" partidário, identitário (de esquerda, porque há o identitarismo de direita), monocórdico. Mas eles não vão mudar, pois não saberiam como fazê-lo.


Post-scriptum: aproveitem para passar por esta página do ANTT de Portugal - https://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/abolicao-do-trafico-de-escravos/ 

16.1.22

Benjamin Constant - sobre a abolição do tráfico de escravos:

 

"A escravatura corrompe o senhor e o escravo" (Livro II, p. 18). 

As medidas tomadas para abolir o tráfico, na prática, só pioraram as coisas. (Livro II, p. 4). 

"O tráfico dos negros tornou-se bem mais atroz depois que ele foi entravado por proibições ineficazes" (Livro II, p. 5)

A violência dos escravos (por exemplo em S. Domingos) respondeu à dos senhores, ainda que não fosse correta. (Livro II, p. 17)


(Commentaire sur l'ouvrage de Filangieri. Paris: Dufart, 1832. Encadernado em Lisboa. Comprado em Luanda no século XIX)