12.8.22

O perfil da faca de Salman Rushdie

O apelo demagógico, oportunista e confusionista de Putin ao fim de um mundo dominado pelo Ocidente faz apenas parte da encenação justificadora de um apelo mais realista à legitimação de ditaduras que eliminam os seus oponentes fisicamente. Nesse aspeto, Putin e o fascismo islâmico são iguaizinhos a Hitler e seu nazismo, ou a Stalin e seu comunismo. Não por acaso, Putin e os dirigentes iranianos se apoiam mutuamente. Não por acaso, também, o regime iraniano usou dos mesmos argumentos de Putin perante a facada em Salman Rushdie: a culpa é do Ocidente. A culpa é sempre do Ocidente, pelo menos desde o fim do século XIX e, no entanto, os que vieram culpando essa entidade fantasmagórica deram-nos a pior das guerras mundiais, em que para acabar com o suicídio do povo japonês foi preciso largar uma bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki. Assim mesmo, deixem-se de subterfúgios. Os kamikazes suicidavam-se para assegurar que matavam o inimigo já vencedor e tudo em nome, não do imperador, mas do fantasma identitário que ele corporizava, aliado a um tirano alemão que pretendia eliminar sistematicamente judeus, pretos e ciganos. Deram-nos também as piores ditaduras, islâmicas, fundamentalistas, comunistas, nacionalistas (incluindo nazismo, fascismo, putinescas), racistas (incluindo o apartheid na África do Sul e os novos racismos), étnicas (incluindo Ruanda). Se isso é alternativa aos EUA e ao Ocidente, vamos aguentar com eles mesmo assim, que o resto continua sendo pior. 

Atitudes e discursos como os de Khomeini, Putin, Orban, Chavez, Maduro, Ortega, Xi Jinping, Trump, dos radicais islâmicos ou religiosos fanáticos de qualquer parte, dos grupos identitários extremistas, dos ditadores em geral e outros que escondem sê-lo ou ter isso programado, alimentam um ambiente geral de intolerância no qual a morte do adversário se torna até honrosa, conforme o ponto de vista do assassino. Não por acaso as facadas em Salman Rushdie foram comemoradas no Irão e o seu autor considerado um herói (aparentemente, nada oficial, manifestações espontâneas num país onde elas não existem). 

Salman Rushdie, desde 1989 (ano da publicação dos Versos satânicos) ameaçado pelo Irão e pelo radicalismo que ele protagoniza (não é o mesmo em todo o mundo islâmico), foi esfaqueado barbaramente hoje em Nova York. Para o significado do acontecimento, o perfil do autor do crime é pouco relevante. Mas é sintomático ter sido elogiado no Irão como um herói. Como também sintomático o silêncio dos que não protestaram contra o ato, dos que não denunciaram esse ato, incluindo chefes de várias ditaduras. Epistemologias diferentes? Não. A lei da morte é universal. O fim do famigerado 'mundo ocidental', ou do seu domínio, neste momento, significa apenas que não nos iremos da lei da morte libertando. 


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