27.8.22

Clichês, eufemismos e falsificações

 "Vejo que hoje há uma visão quase idílica da escravatura" - onde? escrita ou realizada por quem? 

Não conheço nenhum título nem nenhum pensador, ou escritor, atual, que subscreva "uma visão quase idílica da escravatura". Pelo contrário, alguns aprofundam a visão do tráfico de escravos mostrando como ele envolveu todos, desde a captura e venda na origem dos traficados até à compra nos últimos destinos. Hoje não é mais possível pensarmos que de um lado havia os bons e do outro os maus, como nos tempos da Inquisição ou da Revolução. Mesmo agentes da escravidão viraram por vezes escravos e vice-versa. Idílico dizer isso? Pelo contrário, uma distopia total e que nos mostra que não houve paraísos, idílios ou coisas parecidas na história dos homens.

Outros, ainda poucos e medrosos, demonstram como os processos, as legitimações, os recursos e as artimanhas se globalizavam nesse tráfico. Há muito e não só hoje se conhece também que, tanto escravos quanto senhores (os mais diversos), misturaram referências culturais enriquecendo as suas personalidades e estratégias sem que isso dependesse de ser ou não ser escravo ('coisas' de escravos eram apropriadas por patrões e vice-versa; claro que uns apropriavam como casta ou elite e outros como subjugados, mas todos misturavam traços culturais diversos). Dessas misturas resultaram muitas das culturas nacionais e regionais de hoje. Será isso que chamam de "visão quase idílica"? Nada tem de idílico, foram misturas apesar de, apesar da violenta e desumana realidade da escravidão, no entanto universal e multissecular (idílica esta constatação?). Apesar dela, e, muitas vezes, para torná-la mais eficaz, ou resistir dentro dela, dela-realidade-escravocrata, em sociedades desiguais e cruéis, impiedosas. 

Não interessa o autor da afirmação colocada no começo, dessa ou de outras afirmações idênticas, interessa a expansão dos clichês de cafés ou de twitters, tão nauseabundos quanto os outros e visando maior efeito imediato. 


Outro clichê, equivalente, reporta-se sempre à "cultura dominante". A cultura dominante, hoje, é a que se reporta à "cultura dominante" criticando-a, como se vê pelos prémios e subsídios académicos, pelos títulos e subtítulos de textos de divulgação, manuais de ensino, páginas de cultura de periódicos generalistas, discursos de políticos oportunistas. Desde há várias décadas é assim. E faz-se a crítica denunciando 'um tempo em que', sem se pensar nos espaços em que, como se todos os espaços fossem abarcados por um mesmo tempo social e político. A globalização não conseguiu tanta uniformidade...

À falta de uma realidade à qual nos opormos, em nome da hipercorreção político-partidária, para legitimar nossa ambição de 'subir na vida' e 'ditar regras', evocamos um fantasma do passado e, para não se reparar no anacronismo, metemos na frase a palavra "hoje". Belo truque de mágica para uma mensagem instantânea numa rede social de pessoas apressadas e fúteis. Porém, dizem "hoje", a gente olha para os lados à procura do tal idílio, nada se vê, nada se escuta, só pessoas a dizerem que é assim, "hoje", na "cultura dominante", mas os tais idílicos do tal hoje tornaram-se entidades míticas, sem chão, fantasmas para pagarmos aos feiticeiros... 

Hoje a escravatura chama-se migração ilegal, por exemplo, e os migrantes pagam até para morrer no caminho, pensando em melhorar a sua vida. Mas não vejo os que falam da "visão idílica" de "hoje" sobre a escravatura denunciarem isto e sobretudo nestes termos. Se o fazem é para demolirem e denunciarem mais uma vez o "Ocidente", várias formas de capitalismo, etc., ou seja, mais uns fantasmas, ignorando a origem dos problemas e das migrações, que vem na maioria dos casos de governos autoritários, promotores de profundas desigualdades sociais e sem que o tal 'Ocidente' esteja interessado nessas políticas. Como pode interessar, a quem procura extrair recursos rapidamente e barato, esse tipo de governação? Hoje, no hoje de hoje mesmo, sabe-se, traz mais problemas do que vantagens a governação corrupta, ineficaz para o desenvolvimento e autoritária. Traz, por exemplo, tarde ou cedo, instabilidade, a par de morosidade e despesa excessiva com agentes corruptores e corruptos, quando não com 'missões de paz' ou de guerra. Se uma potência pode extrair recursos em estabilidade, legalmente, porque irá promover guerras, missões de paz, ditaduras, em vez de negociar com governos eleitos e que precisam de se reeleger em liberdade? A liberdade, além de muito melhor para todos, é mais rentável que a opressão. Felizmente nisso sou idílico. É muito mais prático fazer-se acordos ao nível dos governos e pagar a governos eficientes, legais, democráticos. Só quando a instabilidade se torna insuportável (financeiramente) é que as grandes potências aproveitam para criar nichos estritos e provisórios de eficácia rápida na extração de matérias-primas. O que, por exemplo, a Rússia faz hoje descaradamente já e fizeram mais países para tirar petróleo do Iraque depois de 2003.

Hoje a escravatura é também a das mulheres retidas sem documentos em casas de grandes senhores, não do 'Ocidente', no qual os tais senhores e senhoras seriam felizmente denunciados, tarde ou cedo, por uma imprensa livre e combativa, como já sucedeu com uma jovem diplomata indiana em Nova York. Não no 'Ocidente' mítico, mas em vários países árabes reais e não só. Mulheres e homens de casta que trazem mulheres e homens pobres a trabalhar 'com a família', 'pobres' que são 'da família', escravos e escravas da família, 'de casa', recebendo pequenas compensações em troca de si próprios - como há milhares de anos os escravos sabem que se passa. 

Hoje a escravatura é a das pessoas a trabalhar sem salários, ou com salários baixíssimos, ou com salários em atraso crónico, situação frequente por exemplo em Angola. 

Que sentido faz, perante isso, escritores que se dizem empenhados em contribuir para o avanço da humanidade, concentrarem-se em desmontar "uma visão quase idílica da escravatura", pretensamente atual mas que, na verdade, não existe hoje em lado nenhum? Para quê 'atirar no morto'? mmmm...... 'passa a mão pela tua boca'...

Deixem-se de conversas para boi dormir a olhar o palácio... A tal humanidade, a humanidade sem clichês, aflita e real, saudará os vossos esforços quando eles forem de hoje e para melhorar o presente. O resto são 'redes sociais virtuais'... para vender livros e só melhoram o bolso dos oportunistas. 


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