17.12.18

Olavo popStar de Carvalho


Há em todas as culturas livres pensadores independentes que, por pensarem de forma própria, ficam isolados em face da institucionalização do saber - seja ela representada por que instituição for. 

Esses pensadores heterodoxos passam, geralmente, mal a maior parte das suas vidas: incompreendidos, rejeitados, silenciados, denegridos e com pouco dinheiro, por consequência. 

No entanto, o seu papel em sociedades livres é fundamental: eles constituem a própria condição do pensamento. São eles que desmontam as ideias feitas, que experimentam novas hipóteses e teorias, que desafiam os intelectuais instituídos a comprovarem a sua ciência pelo simples facto de pensarem por si próprios e agirem em conformidade. 

Lembro-me de casos tão diversos como Agostinho da Silva, Ariano Suassuna e Olavo de Carvalho. Recordo-me dos três em razão de um mal que lhes foi comum, o ponto fraco de quem lutou muito sozinho e durante longos anos. Ao começarem a ser reconhecidos, ao se começarem a interessar por eles, a tendência, numa sociedade de consumo como a nossa, é a de os transformar numa espécie de popstar, ou seja, numa mistela de fácil digestão e que apresenta surpresas, novidades, em relação a tudo o que é dito habitualmente, mas entra na mesma massa inconforme (sem forma) onde rolam os hambúrgueres, as pizzas, o "pós-" e o "de-", as músicas para adolescentes e o plástico dos oceanos. É preciso que eles continuem a surpreender, mas é também necessário torná-los inofensivos. É preciso triturar o seu pensamento, moer bem os elementos originais, para se propor ao grande público uma pasta comestível à hora da refeição. 

Por um estranho paradoxo, o público alarga-se imenso e um pensador que se destacou por nunca abdicar do ato de pensar e de pensar profundamente, seriamente, um pensador que por isso mesmo foi 'descoberto' sem que nenhum grande meio de comunicação de massas o 'processasse', fica triturado para o mesmo consumo fácil de ideias feitas que sempre combatera. 

Pensadores há que se retraíram sistematicamente, fugindo à publicidade. Outros procuraram essa publicidade. Uns terceiros, vão atrás, quando os arrastam, velhos e cansados, na mira de chegar a um vasto público. Por isso figuras como Agostinho da Silva, Ariano Suassuna e Olavo de Carvalho acabaram prestando-se a uma espécie de pastiche de si próprios. 

Aconteceu com as entrevistas de Agostinho da Silva na televisão  portuguesa e com a maioria das palestras que proferiu nos últimos anos de vida. Era um espectro de si próprio, custa-me dizê-lo, caiu na vaidade, cedeu à procura de efeito imediato no público, agiu portanto como qualquer estrela de cinema ou televisão quando é entrevistada. 

A Ariano Suassuna arranjaram-lhe um programa em que parecia um entertainer a cativar pelo humor fácil um público - na verdade, um público nada inclinado a pensar por si próprio, que ia ali mais divertir-se do que procurar um pensamento alternativo e sério. Ele sempre tivera essa faceta de entertainer nem tão sertanejo assim, falar com ele era fascinante, em parte, por isso, por essa atuação dramática, mimética e bem disposta. Mas ele fazia isso levantando hipóteses de leitura (por exemplo da cultura brasileira), abrindo suspeitas, dúvidas e discordâncias, e realizando possibilidades de expressão que propunha na prosa. Nos programas que dele se podem ver em rede, já não é assim, é só entretenimento, o resto caíra pelo caminho e ficava ali, custa-me dizê-lo, um velho vaidoso, astuto ainda, mas convencido, brincalhão só pelo gosto de fazer rir e, sobretudo, inconsequente, contradizendo-se até sem dar por isso. Era um triste espetáculo para quem conhecera aquela figura portentosa artística e intelectualmente falando.

Olavo de Carvalho não teve essas oportunidades, mas ainda vai a tempo. No entanto criou a sua própria oportunidade, sobretudo com os vídeos no youtube e começou a repetir uma imagem de si próprio como pensador irreverente de direita (já não tanto alternativo, só de direita, a novidade mais nova do pensamento encartado brasileiro). A maioria das intervenções não desperta o pensamento, não desmonta já sofismas e ideias feitas, cai repetidamente nas mesmas acusações, exagera-as, cai na tentação de chocar, insultando com facilidade, comentando livros e passagens de outros textos de que já nem se lembra bem, ou que não leu devidamente, e tudo isso, parece, para impressionar, para criar popularidade rápida, consumível num ápice. 

O que ele representava quando começou era bem diferente, pelo menos para mim era um pensamento na contramão, levantando problemas e desfazendo preconceitos, consensos intelectuais orquestrados, expondo com precisão todas as tresleituras e a falta de rigor, abrindo os olhos ou procurando fazê-lo, desmontando condicionamentos inquestionáveis e astros de segunda mão que faziam maus trabalhos (hoje esquecidos) e eram vistos como geniais.

Era por isso que, há muito poucos anos, era absolutamente proibido referi-lo na maioria dos círculos e circuitos académicos, era considerado crime de lesa-intelectualidade e as mesmas fake news, as mesmas distorções massificadas de que hoje a esquerda brasileira tanto reclama, destruíam a sua imagem, como a de vários outros - incluindo alguns que realmente não prestavam para nada, isso é verdade. 

A mesmice do pensamento mecanizado para reprodução em série, que tanto é de esquerda quanto de direita (conforme as épocas), criou um preconceito beato e fanático protegendo-nos a todos desse pensador diabólico, absolutamente inaceitável e, portanto, proibido. Era como desmontar a teoria de Chomsky em Linguística ou a de Paulo Freire em Pedagogia. Incorríamos em pecado fatal e as chamas da Inquisição consumiam a nossa figura pública, privada e profissional. Seríamos, simplesmente, corridos do cenário. ,

Por isso também é que ele dizia que havia uma ditadura marxista nas universidades - e punha a tónica no marxismo. O marxismo parece-me pouco atraente e baseado mais em tolices, hoje desmentidas (exemplo geral: a evolução necessária da humanidade do comunismo primitivo, pelo capitalismo, até ao comunismo científico), ou no uso condicionado de conceitos operatórios úteis como os de classe e dinâmica social. Mas o pensamento marxista está cheio de pensadores heterodoxos que trouxeram contributos importantes às sociedades livres. O problema não está no marxismo, como também não estava no antimarxismo, o problema é deixarmos de pensar ou querermos que outros o façam por nós. A tónica do combate ao status quo académico nunca devia sair daí, do combate à desistência de pensar por si próprio e, consequentemente, do combate à falta de honesta e frontal controvérsia, de disputa teórica e metodológica nos meios académicos.

Quando Olavo de Carvalho parecia combater isto, mesmo que não concordássemos com tudo o que dizia (sempre teve tiradas excessivas ou precipitadas, como por exemplo quando reduzia a cultura brasileira à europeia), ouvíamos e víamos e líamos sempre que tivéssemos oportunidade, porque também ele nos punha a pensar, nos obrigava a pensar com a sua discordância e com a sua irreverência. Importunava e, portanto, solicitava respostas. Em muitos aspetos, a sua análise da mesmice intelectual, do consenso artificial imposto às universidades e à cultura mediática, era certeira. Falsificações, leviandades, proibições, primarismos e embustes intelectuais de que nos apercebíamos eram também identificados por ele. Então pensávamos: bom, não concordamos em tudo, há que discutir isto e aquilo, o que é saudável, mas ele diagnosticou bem o problema e o problema é que não se pensa nem se discorda, reproduz-se, imita-se e limita-se. Mas isso acontecia um pouco por todo o mundo e independentemente do marxismo. O mal tem raízes mais fundas e essas é que nos devem preocupar, ou caímos no mesmo que denunciamos.

Agora que virou popstar e guru para o mesmo tipo de inconsciência e leviandade que tanto critica (a única diferença é que se dizem de direita e não de esquerda), passou de companheiro a um empecilho para quem defenda uma sociedade livre e um pensamento em aberto. Não tanto por culpa sua, na medida em que, de vez em quando, ele próprio insulta os seus seguidores, chama-lhes burros ou levianos, alerta-os para que é preciso pensar. Mas foi o espetáculo a que se deu que permitiu o que está a passar-se. E o que está a passar-se, parece-me, é que ele pensa cada vez menos e se reproduz cada vez mais a partir do pior que tem para mostrar. 

Infelizmente, ter-se-á fechado assim mais um capítulo de pensamento livre e irreverente, desta vez à direita - localização, na geografia política, onde se encontram tantos ou mais heterodoxos do que à esquerda. 

Hoje, relendo estas linhas e à luz do ponto a que chegou Olavo de Carvalho na cena mediática e midiática, percebo que tinha toda a razão. Reli, pela última vez, este texto já depois de quase defunto o protagonista a que me referi. Continua atual. 20.12.2021.