19.1.22

Negação do racismo 'negro' - pressupostos falsos, tentações repressoras e as câmaras de gás


As reações inconsistentes a um texto de António Risério demonstram bem, não necessariamente as suas razões, mas o clima político-partidário que as motiva. E mostram, sobretudo, que o racismo 'negro' se baseia numa sucessão de clichês assentes em pressupostos falsos. O que faço aqui é, com breves frases também, desmontar a falsidade e os pressupostos, em vez de rebater lugares-comuns autoritários com outros lugares-comuns candidatos a autoritários, igualmente baseados em suposições falsas (os que levaram Bolsonaro ao poder).

Escolho citações do twitter:

"Não existe racismo reverso. Racismo é sistema de poder - econômico, jurídico, midiático, social, físico - fundado na ideia de que não somos humanos. Nunca houve no Brasil negros com poder oprimindo brancos. Afirmar o contrário, com anedotas, é desonesto na medida em que é cruel."

(Thiago Amparo)

"Branco não é perseguido em lojas, não é espancado pela polícia, não perde vaga de emprego só por ser branco.

Não existe um sistema que beneficie o negro diante do branco."

(Pedro Duarte)


"O racismo é um sistema de divisão por meio da categoria de raça, de poder, estrutural, manifestado historicamente, do qual herdamos um conjunto de práticas sociais, políticas, jurídicas, institucionais, que são responsáveis por discriminar, estereotipar"

(Jonas di Andrade)


"A base do racismo são relações de poder pautadas na raça. Relações que se construíram historicamente com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna. Por isso, negros são os mais pobres, os que mais morrem de violência policial e tem menos acesso a oportunidades"

(Vitória Damasceno)


1. Como facilmente se nota, há uma generalização de um caso específico para a definição de racismo usada nestas citações, que transforma um dos exemplos históricos em base única para a definição geral, ou seja, reduz a definição geral a um dos casos que a ilustram. Esse pressuposto é a base geral para a legitimação do negacionismo do racismo e suprematismo 'negro'.

2. Há um segundo pressuposto, mais escondido: não se discute a falta de fundamento do conceito de raça para criticar o racismo, fala-se apenas desse caso histórico e localizável. Isto porquê? Precisamente porque, reduzida a questão ao caso, deixa-se aberta a porta para o racismo compensador, a discriminação 'positiva' e continua-se a usar um falso conceito (o de raça) para discriminar - agora em sentido contrário e satisfazendo pautas partidárias também. Vamos às citações:

3. "Racismo é sistema de poder - econômico, jurídico, midiático, social, físico." Não, racismo é a discriminação de uma pessoa por outra em razão de diferenças físicas socialmente construídas e preconceituosas. Baseia-se em generalizações abusivas e não constitui, necessariamente, um "sistema de poder". É por isso que vimos racismos de reação, reversos, dentro do próprio colonialismo, não por resistência, mas por uso do mesmo erro conceptual rentabilizado pelo esclavagista.

4. "fundado na ideia de que não somos humanos". Não, fundado na ideia de que os outros (os que não fazem parte do nosso grupo) são menos humanos ou não são sequer humanos. Os outros. É por isso que muitos povos intitulam-se a si próprios como 'homens' e aos outros dão nomes depreciativos, como 'bárbaros' (os que não sabem falar; cuja língua está cheia de 'bar' 'bar' - ou seja, os que se chamavam berberes, palavra que tem a mesma origem de bárbaros). Exemplo de povos que se intitulam 'os homens' e, portanto, não consideram que os outros homens sejam propriamente humanos: ba-ntus, literalmente os-homens. Ki-mbundu são homens, povos; u-mbundu são homens, povos; os outros, por exemplo khói e san, povos pré-bantos, são designados pelos seus vizinhos bantos com termos depreciativos - o que as autoridades coloniais aproveitaram para designar também esses povos.

5. "Afirmar o contrário, com anedotas, é desonesto". Casos não são anedotas e, perante afirmações genéricas, um só caso pode desmentir a afirmação (as senhoras da Bahia, por exemplo, têm mesmo paralelos na costa ocidental africana, incluindo em espaços coloniais portugueses, como é o conhecido caso das bessanganas e em ambos os casos nos levam a repensar o quadro social tenso e complexo no qual se afirmaram como sujeitos ativos apesar de inicialmente discriminadas). Houve casos inversos, sim, e a sua pertinência vem de desmentirem essa colagem entre a definição geral de racismo e um caso concreto, histórico, de racismo contra povos 'negros' escravizados.

6. "é desonesto na medida em que é cruel" - isto mostra o tipo de raciocínio que anima estas disputas e estes movimentos sociais. Atira-se com clichês consagrados pelas nossas tribos para conclamá-las à "resistência" (leia-se: destruição pública de quem pensa de outra forma) e recorre-se aos clichês exclusivamente por esse efeito imediato nas tropas. Nem se repara na total falta de lógica ou rigor. Na verdade, o "cruel" não define a "desonestidade", ninguém é "desonesto na medida em que é cruel". Essas categorias andam baralhadas. Um homem, infelizmente, pode ser honesto e ser cruel. Por exemplo: não mente, não é corrupto, não rouba, mas também tem preconceitos e, por eles, prejudica alguns dos 'outros' - os tais menos humanos que nós - não os apoiando, fechando-lhes portas, mantendo-os escravos. Estranho? Próprio do colonialismo europeu? Não. Alguns e algumas das pessoas que reagem com estes comentários serão honestas, porém profundamente cruéis quando não distinguem o 'branco' do racista.

7. "Branco não é perseguido em lojas, não é espancado pela polícia, não perde vsga [vaga] de emprego só por ser branco.

Não existe um sistema que beneficie o negro diante do branco."

Existe, sim. Por exemplo na África 'negra'. E não só, também em vários países asiáticos no que diz respeito às relações entre asiáticos e europeus.

8. Estes falsos pressupostos se resumem e concentram nesta afirmação: "O racismo é um sistema de divisão por meio da categoria de raça, de poder, estrutural, manifestado historicamente, do qual herdamos um conjunto de práticas sociais, políticas, jurídicas, institucionais, que são responsáveis por discriminar, estereotipar". Um resumo das teses que legitimam o suprematismo 'negro'.

Explico por que não me parece verdade. Essa "divisão por meio da categoria de raça" existiu e existe, infelizmente, nos cinco continentes, protagonizada pelas mais variadas populações que se consideram 'raças', umas oprimidas, outras opressoras. Um caso histórico típico de uma "raça" subjugada (portanto sem poder) que não deixou de manter-se separada, não deixou de racializar e de excluir os outros grupos, foi o dos judeus em cativeiro.

9. Resumo final da confusão de um exemplo histórico de racismo da classe dominante com a definição geral e universal de racismo: "A base do racismo são relações de poder pautadas na raça. Relações que se construíram historicamente com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna. Por isso, negros são os mais pobres, os que mais morrem de violência policial e tem menos acesso a oportunidades". O racismo vem só do conceito de "raça", grupo, etnia e da necessidade arcaica de separar mentalmente e socialmente os grupos para assegurar a reprodução dentro do grupo. O racismo pode ser usado pelo poder ou pelo oprimido, como já mostrei. A base do racismo parece-me, portanto, que são simplesmente relações humanas baseadas no conceito de 'raça'. Não se construiu historicamente só "com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna". Isso, aliás, resulta da própria colonização e ocupação do território de outro, independentemente da cor da pele: alguém invade e ocupa a casa do vizinho para se colocar a si próprio em lugar subalterno? Por isso, a invasão ou colonização do território de uma etnia ou chefia vizinha, ainda que tenham todos a mesma cor de pele, resulta em subalternização do vencido, que muitas vezes se traduz em escravização do derrotado e toda a família.

As afirmações que procuro desmontar, taxativas, reiterando apenas o 'já dito' para dizer-nos que é proibido negá-lo, mostram com maior clareza o seu cariz repressivo em outras afirmações, como esta:

"Não adianta ter editoria de diversidade, ombudsman e programa de treinamento voltado a profissionais negros se nas páginas do jornal ainda há espaço para aberrações em forma de texto que defendem a ideia estapafúrdia de racismo reverso.

Mais do que lamentável, é vergonhoso."

Portanto, quem afirma o que - por exemplo - Risério diz, deve ser remetido ao silêncio, ao desprezo, por necessariamente "estapafúrdio", aberrante. Ora, se o que o outro nos contradiz é "estapafúrdio", "aberração", está fora da racionalidade e, portanto, a negação do racismo 'negro' está fora daquilo que define o ser humano: um ser racional. Voltamos, por esta via, às primeiras e primárias manifestações de racismo: os outros não são humanos, ou são menos humanos. O que a mim me repugna não é a relativização da mágoa nem da revolta 'negra' ou 'preta', o que a mim me repugna é a continuação das tentações totalitárias a partir de reivindicações identitárias e da manipulação das vítimas dos racismos. O mal do racismo é o racismo, seja quem seja a vítima e em qualquer exemplo histórico: as câmaras de gás estão na nossa memória para comprovar isso mesmo.

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Surgiram, entretanto, as mais variadas reações, de apoio, de repúdio, de reação do próprio ofendido (Risério, no facebook), na sequência do seu texto, que ativou o botãozinho automático típico dos fanatizados. Tudo somente confirmações, entre as quais a carta de repúdio de jornalistas da Folha de São Paulo. Uma carta que demonstra bem o cinismo com que esse grupo de jornalistas atua.

Não perderei tempo a comentar, já disse o que tinha para dizer. Apenas observo que a tentativa de calar uma interpretação diferente se legitima em nome de "uma Folha mais plural". Aqui se regista a mesma falsidade de raciocínio de que já falei, pois silenciar alguém é o contrário de aumentar a pluralidade de opiniões, não pode portanto legitimar-se em nome dessa pluralidade que está a negar. 

Aqui fica somente o meu testemunho, pois cancelei a subscrição da Folha (processo difícil, em que somos psicologicamente violados, torturados, quase obrigados a reconsiderar, através de uma pressão telefónica digna de Kafka). Faz meses que anulei a assinatura e, precisamente, pela pobreza em que a secção cultural caiu, sobretudo na Ilustríssima. Todos os textos vão no mesmo sentido, os temas são sempre os mesmos e o leque de autores é determinado pela mesma monotonia ideológica. Isso resultou no que resulta sempre: uma pobreza de conteúdos provocando um desinteresse total. A gente só precisa espreitar a imagem, a primeira linha, o título ou subtítulo, nem precisamos de ler o primeiro parágrafo ou as caixas de destaque. Sabemos logo tudo o que vem a seguir e, de vez em quando, para confirmar, eu lia: meras repetições de clichês enfileiravam-se na listagem retórica e sofística das exaltações do único reverso...

Nem direi que faço votos para que tais jornalistas aprendam com a polémica. Ela lhes mostra que o seu domínio sobre a produção cultural brasileira está próximo do fim, avolumando-se o número de vozes - diversas - de pessoas com coragem para enfrentarem a falsificação promovida pelo "viés" partidário, identitário (de esquerda, porque há o identitarismo de direita), monocórdico. Mas eles não vão mudar, pois não saberiam como fazê-lo.


Post-scriptum: aproveitem para passar por esta página do ANTT de Portugal - https://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/abolicao-do-trafico-de-escravos/ 

16.1.22

Benjamin Constant - sobre a abolição do tráfico de escravos:

 

"A escravatura corrompe o senhor e o escravo" (Livro II, p. 18). 

As medidas tomadas para abolir o tráfico, na prática, só pioraram as coisas. (Livro II, p. 4). 

"O tráfico dos negros tornou-se bem mais atroz depois que ele foi entravado por proibições ineficazes" (Livro II, p. 5)

A violência dos escravos (por exemplo em S. Domingos) respondeu à dos senhores, ainda que não fosse correta. (Livro II, p. 17)


(Commentaire sur l'ouvrage de Filangieri. Paris: Dufart, 1832. Encadernado em Lisboa. Comprado em Luanda no século XIX)