25.2.22

Anti-putinesca

Como era de se esperar, Putin ocupa a Ucrânia, que já vinha comendo aos pedaços há vários anos. Assim adia a falência da nova URSS por mais um tempo, mas fez uma guerra muito cara (a Síria, a Venezuela, o Mali, a Centro-Africana ficaram mais baratos e mais longe e darão bom lucro). Entretanto se joga na batalha da Ucrânia muito mais que a independência desse país: é a liberdade europeia e no mundo que está em jogo. 

O que é espantoso é ver que, mais uma vez, a 'opinião pública' em geral andava completamente baralhada (nos mais diversos quadrantes), deixando-se tocar por argumentos falaciosos, paralogismos e completas mentiras num jogo que o ditador russo domina desde os tempos da URSS. Intoxicada já com discursos autodestrutivos em nome de uma hipercorreção moral e política de fantasmas e de passados, fragilizada pelas fragmentações que tais discursos promovem através de grupos de pressão agressivos e repressivos, à esquerda e à direita, mostrando-se incapaz de competir com a agilidade russa (e norte-americana) na internet, a Europa livre não tem tido capacidade de resposta e vem somando fracassos internacionais a nível económico, político, militar. Os menininhos saídos das escolas de formação política sem qualquer experiência da vida vão, literalmente, azeitando o rabinho para não doer muito.

Perante isso, a aliança anti-democrática mundial, orientando-se por simples cálculos de causa-efeito (como faziam também antes os EUA), esmagando quem falha e quem não concorda, limitando-se a fazer contas e destruir prejuízos, apresenta-se hoje como a sequência vitalizada do antigo 'mundo comunista', unida somente em torno da defesa das ditaduras. Se as democracias não se assumem na eficácia da sua defesa, estão perdidas. O caminho é duro, mas incontornável: 

1) neutralizar internamente as forças que as corroem: 

    a) pela ação política, pelo argumento, obrigando a debates abertos os grupos opostos à democracia, sem possibilidade de manipulação de assembleias (debates na tv, por exemplo, apenas entre os intervenientes e com os telespectadores enviando perguntas por mensagens escritas); 

    b) por ação administrativa não financiando projetos culturais ou científicos que defendam soluções antidemocráticas na sua fundamentação e argumentação;

 2) preparando quadros por experiência de vida e não só pela formação académica, tendo os nomeados para funções públicas, necessariamente, que possuir provas conhecidas de eficácia em algum setor de atividade;

 3) exigindo-se uma governação mais consequente, penalização (por perda de elegibilidade por escolha popular ou por nomeação) de políticos que promovam publicidade enganosa (por exemplo não cumprindo promessas eleitorais que tinham condições para cumprir) e eliminando efetivamente bolsas de pobreza ou de marginalização; 

 4) aprofundando o sistema de representação de maneira a tornar o poder mais próximo das populações representadas; 

 5) dizendo diretamente a quem as quer destruir (ao defender soluções ditatoriais, repressivas, censuras, saneamentos ideológico-partidários, racistas, segregacionistas) que isso é intolerável e, portanto, que, não sendo objeto de repressão, não poderão tais pessoas beneficiar dos empregos e benesses do Estado que pretendem destruir;

  6) assumindo que a emigração, tal como se vem praticando ou admitindo, não pode prosseguir (sem prejuízo dos emigrantes legalizados até agora) porque não tem viabilidade económica. Nesse campo, propondo às comunidades divergentes (ciganos, etnias e emigrantes que não se pretendam integrar no conjunto nacional, nómades, alternativos) um pacto de convivência que assegure espaços regidos por regras próprias, exceto no que diga respeito ao policiamento, à submissão ao poder autárquico respetivo, ao pagamento de taxas iguais às dos outros cidadãos, às operações de saúde e de higiene ambiental. As regras de relacionamento entre comunidades específicas e comunidade nacional, num pacto desse tipo, estabelecem-se pelos princípios de justiça da comunidade nacional, pois não se pode rejeitar a maioria em nome da minoria.


Alinhavadas estas notas para uma hipotética discussão, me pergunto: qual o político democrático disposto a assumir as verdades que elas implicam e a justeza do mal-estar da maioria das populações? Macron quis perfilar-se nesse horizonte, mas revelou-se outro fracasso, sem coragem nem frontalidade, para além de ingénuo nas relações internacionais. Há mais candidatos credíveis? 


https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/02/25/russia-e-expulsa-do-conselho-da-europa-diz-ministro-italiano.htm

Para recordar a Revolução da Dignidade de 2014, um artigo equilibrado da BBCnews Brasil, publicado em 23 janeiro desse ano.

Já depois de escrita esta mensagem, recebi de um amigo uma "análise equilibrada", "muito bem escrita", etc., assinada por um historiador brasileiro, penso que professor na USP. Retoricamente é uma peça sintomática: sem qualquer sentido de equilíbrio ou de estratégia retórica entra logo dizendo que a culpa da guerra na Ucrânia é da responsabilidade de Joe Biden por querer alargar a NATO. Assim, na primeira frase. Depois nos convida: "mas vamos ao factos". Ora, ao que vamos é a alguns factos distorcidos e outros não distorcidos, todos comentados para guiar o nosso pensamento na direção da acusação inicial. No fim do historial devidamente comentado, quando refere a URSS e a Ucrânia, ou os problemas com a Ucrânia e na Ucrânia quando se formou a URSS, limita-se a dizer que ela reestruturou essa região, passando um pano branco sobre factos gravíssimos que mais animosidade ainda trouxeram, até hoje, aos ucranianos relativamente ao que vem da Rússia. Parece a estrutura retórica típica de um poder instituído e não discutível, por exemplo o da igreja institucional no tempo da Inquisição. Nesses momentos, claro, os textos começam todos por reiterar a opinião verdadeiramente dominante (ali era só a que se pretende dominante) e em seguida vão desfilando argumentos que servem somente para os que já acreditam e seguem as mesmas opções religiosas. Isso é muito esclarecedor acerca da mentalidade com que se escreve tais textos.


7.2.22

África no mundo e as imposturas identitárias


África no mundo – livre das imposturas identitárias é a edição portuguesa [1] de um livro a sair proximamente no Brasil também, já ampliado e, em alguns pontos, pensado para a realidade quase continental desse país irmão (porque não havia de ser um país irmão?).

O seu autor, Jonuel Gonçalves, é um veterano da pesquisa em economia internacional, com particular incidência em África, e atuação no jornalismo (nota-se no seu estilo) e na ação combativa no sentido, primeiro, da independência de Angola, depois, da democratização do país. A sua pesquisa para o doutorado (UFRRJ, 2003), sobre a água de ponto de vista econômico, comparava trechos do Cunene com o Uruguai (Luanda: Nzila, 2004), marcando já a índole comparativa e africanista da sua reflexão. Estudou em França, no Senegal, na África do Sul e no Brasil, viveu nesses países e em Portugal também, onde ainda exerce jornalismo (à distância) e pesquisou sobre países do hemisfério sul, principalmente em África e na América do Sul. A sua principal área de pesquisa é a económica, mas hoje percebemos ainda (por enquanto) que as áreas científicas não são estanques e, portanto, ele se debruça também sobre questões sociais, além de escrever romances e perceber, assim, os mecanismos literários em sua articulação com a realidade histórica, pessoal e social. O campo de incidência é o continente africano, principalmente ao sul do Saara.

Para ler este livro convém ter presente o percurso do autor. Ele não se dirige a este ou aquele público específico, muito menos a claques. Ele situa-se numa plataforma universal ubicada em África e, portanto, se dirige para todos, mostra conhecer a receção e a situação de vários países e dialoga com intelectuais e leitores de vários países.


O subtítulo do livro é “livre das imposturas identitárias” e a principal impostura identitária é a do racismo. Nota-se frequentemente uma generalização de um caso específico para a definição de racismo usada em clichês, polémicas, manifestos, textos de propaganda. Essa prática transforma um dos exemplos históricos em base única para a definição geral, ou seja, reduz a definição geral a um dos casos que a ilustram. Esse pressuposto é a base geral para a legitimação do negacionismo do racismo e suprematismo 'negro'. A resposta a esse raciocínio desleal é muitas vezes uma resposta parecida, na medida em que também se foca nos casos específicos. O presente livro tem a vantagem de jogar com os casos específicos comparando-os, contrastando-os e, sobretudo, confrontando-os com realidades gerais (humanas) ou globais (que surgem em todo o globo). É bom exemplo disso o resumido historial da negritude feito no livro (pp. 32-35), saltando-se daí para Appiah e Mbembe, Obama e Richard T. Ford. Fá-lo com agilidade mas não levianamente, colocando sempre os pontos nos iis.

África no mundo, apesar da incidência especial no continente-berço, é uma análise da atualidade global que nos traz exemplos de todos os continentes e confronta-os, sobretudo, do hemisfério sul africano e americano. Quando o jornalista nos desmonta as armadilhas, os discursos de separação, os mecanismos de disfarce (títulos de algumas secções do livro), ele mostra que eles têm paralelo e meridiano em todo o planeta. Assim, por exemplo, fala da xenofobia devida ao aumento da imigração sem esquecer o caso sul-africano, quando habitualmente pensamos na xenofobia europeia ou norte-americana apenas. A xenofobia sul-africana tem sido objeto de crítica por parte de outros intelectuais africanos, entre eles se destacando Achille Mbembe. Uma das artimanhas que o autor insiste em desmontar, com toda a razão, é a de se manter numa zona de conforto – a dos implícito inquestionáveis – certos países, regimes, sistemas e definições étnicas. Os contrastes e semelhanças encontrados dentro de cada grupo (contrastes) e entre vários grupos (semelhanças) desdizem, precisamente, a redução dos problemas à localização no mapa identitário ou mesmo físico, escondendo-se que os mesmos problemas existem e existiram em espaços e tempos contraditórios. É o caso, também, das ameaças à democracia.

 

Uma das ameaças à democracia vem da criminalidade galopante. As eleições brasileiras de 2018 foram claro exemplo disso, de como a criminalidade serviu de motivo para legitimar uma aspiração ditatorial. Podia se falar também de Angola, país onde, em 1992, o aumento da criminalidade (alguns disseram que provocado artificialmente) legitimou a criação de uma força policial especial que distorcia os acordos alcançados entre os partidos beligerantes, pois integrava na prática apenas policiais do lado governamental. O combate à criminalidade em Luanda, nesse tempo, serviu para que essas forças especiais (e outras) fossem reprimindo aos poucos a liberdade que se viveu muito brevemente, inibindo a deslocação para certos locais, controlando essas deslocações através de pontos de controlo que serviam para outras arbitrariedades e até para ‘pentear’ (sacar dinheiro) os cidadãos motorizados. Um contraexemplo vem do Brasil do século XIX e envolve um angolano (segundo a jurisdição angolana de hoje, ele seria cidadão angolano caso o país estivesse independente). O que relaciona Eusébio de Queirós com Angola não é só o nascimento em Luanda, como por vezes se tenta fazer crer e o caso vem a propósito para desmontarmos uma armadilha mais. 

Ele não nasceu lá porque o pai era lá juiz e o pai não nasceu lá porque o pai dele foi lá juiz. Assim, contudo, apresentaram a sua relação com Angola já mais do que uma vez. Olhemos a história com detalhe. Domingos Plácido da Silva foi para Angola como degredado político e foi lá juiz. Mas o importante é que se casou com uma senhora de uma das mais antigas famílias da Luanda colonial, uma família que se formou nos meados do séc. XVII e que, pela parte exógena, vinha dos Açores e da região do Porto e, pela componente local, era de Luanda. Essa família mista residiu sempre em Luanda (esporadicamente em Benguela, em razão de cargos) e gerou também o primeiro poeta angolano a publicar um livro, José da Silva Maia Ferreira, cuja mãe era familiar muito próxima de Eusébio de Queirós, por duas vias ou dois ramos (em modo simples: eram primos por consanguinidade e por afinidade). Essa família incluía militares e comerciantes (em geral andavam juntas as duas ocupações), juízes, padres, altos funcionários públicos. O casamento de Domingos Plácido da Silva insere o seu filho, Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, numa rede familiar angolense típica, mantida aliás na linha autonomista no século XIX e, mais tarde, apoiando a luta pela independência (por exemplo a partir de um descendente residente em Paris). É dessa família, cujo ramo Queirós Coutinho sai para o Brasil em 1815, que vem o ministro conservador autor da famosa ‘Lei da Princesa Isabel’. Reduzi-la à ida para Angola, como juízes, do pai e do avô do ministro é deformar a sua verdadeira face, bem mais complexa e diversificada.

Muitas vezes, em complemento, se procura diminuir a importância da rápida progressão do saquarema luandense às relações sociais do pai. Sem dúvida que isso contribuiu, como de resto era o comum naquela sociedade (e ainda hoje é muito comum). Porém, não se menciona que ele, tendo feito parte da primeira turma dos Estudos Jurídicos de Olinda, foi o primeiro a terminar o Curso, com média muito alta e rasgados elogios. A sua bibliografia de estudante acabou sendo mencionada, parcialmente, nas páginas do Diário de Pernambuco, através de anúncios e demonstra que não tínhamos aí um filhinho de papai, mas um jovem seriamente interessado na profissão e na discussão político-jurídica do seu tempo. Também as relações sociais do pai terão contribuído para a precoce nomeação como Juiz de Direito Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, mas isso não diminui em nada a sua atuação, decisiva e brilhante, de que deu conta em relatório que me fez trazer aqui o seu exemplo. É que ele conseguiu reduzir a criminalidade no Rio sem recorrer a muita repressão (que reforçou no que diz respeito a vagabundos e mendicantes), antes atuando socialmente (pela integração de marginais no corpo da polícia, sob orientação e controlo rigorosos), incidindo sobre estrangeiros também, melhorando a segurança e condições das cadeias e agilizando os processos e julgamentos. Assim nos mostrou, querendo ou sem querer, que é possível combater a criminalidade sem apelar ao recurso excessivo da força, que muitas vezes experimenta ambições ditatoriais. Ora, é disso mesmo que fala Jonuel Gonçalves, outro angolano com origens europeias. A criminalidade não justifica as ditaduras, a repressão, os excessos policiais.

 

As ondas relativistas das últimas décadas apropriam-se de tudo: conceitos, teorias, palavras-chave (ou palavras-chaves), campos de estudo, áreas disciplinares nas universidades. Aplicam o mesmo discurso a tudo, recolhendo alguma frase dos textos comentados como ‘prova’ do que dizem, deitam tudo ao chão numa política de terra queimada, não chegam a ler ou comentar obras do princípio ao fim (no geral), exterminadores implacáveis de todo o resquício de mal com uma prática de grandes aspiradores de lixos residuais. E nada fica vivo no terreno. O próprio exterminador evola-se (ou sobe aos céus que desmontou), quando muito escutando ainda aquela musiquinha chamada enola gay. De sinal contrário, Jonuel Gonçalves tem uma proposta construtiva: ao mesmo tempo em que desmonta clichês e imposturas, propõe valores e estratégias de desenvolvimento. Não propõe valores no vazio, sobre a terra queimada. Procura valores humanos, mostrando como no terreno eles podem ser operativos.

A defesa da liberdade contra o autoritarismo atravessa o livro todo e vai desmontando falsas dicotomias, usadas por relativistas. Ele baseia-se em dicotomias integradoras visando eliminar essas falsas dicotomias. Por exemplo “estalinista e salazarista” (falsa dicotomia, pois são o mesmo – regimes autoritários) a que se opõem regimes onde as pessoas são livres (a verdadeira dicotomia: liberdade ou autoritarismo). A verdadeira dicotomia remete, novamente, ao universal: liberdade-opressão, por ex., com citação de um título de Amartya Sen (O desenvolvimento como liberdade).

Várias passagens nos recordam que a legitimação das ditaduras e dos populismos, especialmente em África e no ‘terceiro mundo’, está justamente no uso das imposturas identitárias e das falsas dicotomias (por exemplo rácicas, étnicas – sendo sugestivo o caso venezuelano, que não vem referido no livro, pois não cabe tudo em 114 páginas). O autor contrapõe aos autoritarismos, sejam vermelhos ou negros, a liberdade como valor universal, a democracia como proposta política exequível em todo o mundo e necessária ao desenvolvimento económico e social sustentável.

A liberdade como valor universal é muitas vezes combatida alegando-se que esse conceito (nomeado por uma palavra etimologicamente significativa), como também democracia, não está de acordo com os ‘nossos valores’. Isso depende de como olhamos para várias tradições, nas quais, a par da autoridade suprema e definitiva do chefe, encontramos instituições como a da palabre ou a da maka, situações em que as pessoas argumentam livremente (antes da tomada de decisão do chefe). Mas o autor não perde tempo discutindo cada particularidade, ele avança com o argumento decisivo: também nos atuais países democráticos a democracia não estava de acordo ‘com as nossas tradições’, absolutistas como se sabe.

Da mesma forma ele desmonta as tentativas de impugnar a conotação entre democracia e desenvolvimento. Tem havido autores que procuram impugnar essa conotação, geralmente obliterando circunstâncias histórico-sociais que desvirtuavam o começo de uma democracia, como sucedeu na Rússia depois de Gorbachev. Porém, as relações entre liberdades e desenvolvimento são patentes em todos os continentes e, simetricamente, as relações entre regimes autoritários e falta de desenvolvimento. Por vezes avança-se com o exemplo chinês, ou o de Myanmar, ou o de Cingapura, ou o da Indonésia, que no entanto se desenvolveram com liberdade económica e respeito pela propriedade privada (mais ameaçado, esse respeito, só na China). Tirando o microexemplo de Singapura, cuja ‘solução’ menos democrática se fundamentou em consensos sociais e no reconhecimento da existência e dos direitos de vários grupos ‘étnicos’, em todos os outros é muito evidente que o chamado desenvolvimento se alicerçou nos investimentos estatais (caso da China), na importância dos negócios das Forças Armadas que dominam o Estado e formam conglomerados empresariais (caso de Myanmar sobretudo) e num misto disso com generalizadas liberdades (económica, religiosa, associativa), como na Indonésia, que não foi sempre uma ditadura e não é nenhum exemplo de desenvolvimento. 

Em todos esses casos o crescimento económico não foi acompanhado por um crescimento salarial e do bem-estar das populações. As assimetrias entre ricos (ou bem instalados, chamem-lhes o que preferirem) e pobres aumentaram. A saúde ambiental piorou assustadoramente. Portanto: não se deu desenvolvimento, o que se deu foi crescimento de negócios, apadrinhados via Estado e de contornos escusos ou de financiamento forçado pelo artifício dos investimentos estatais. Há uma aparência de desenvolvimento, alicerçada na liberdade económica, mas, acabando-se o papel do Estado ou das Forças Armadas e da corrupção, nota-se que o desenvolvimento era mantido artificialmente e beneficiava uma escassa percentagem da população. Não se pode chamar a isso desenvolvimento. O caso da Rússia é, aliás, exemplar: a sua situação económica, num ambiente de negócios controlado pelo Estado e por uma oligarquia apoiada pelo Estado, é frágil, apesar das anexações e dos contratos abusivos em que países ou pseudo-países importam da Rússia a preços muito acima do mercado ou no nível mais alto do mercado (viu-se, em alguns países, no caso das vacinas anti-Covid, em que o preço altíssimo não foi devido a uma eficácia garantida superior à das outras vacinas – e Angola entra como exemplo recente).

Jonuel Gonçalves usa outras referências, mas não se fica por aí. Como economista que é, especifica, principalmente para o caso africano, estratégias político-económicas concretas: “a superação do extrativismo e a implementação de cadeias agroalimentares” (p. 112 e última), proposta que pressupõe o reforço ou a recuperação da saúde ambiental. A aplicação de tais estratégias pressupõe mecanismos de controlo social (sobre a ação governamental ou simplesmente empresarial) que se referenciam pelos conceitos de liberdade e democracia (como por exemplo: o direito à greve, a independência do poder judicial, a isenção das policias e das forças armadas, uma imprensa inteiramente livre, eleições realmente representativas).


As desmontagens e as propostas não se fazem sem referências teóricas. Acompanha-se – com posturas próprias – de autores com os quais discute de igual para igual (embora num ensaio curto, despretensioso), Achille Mbembe, Stanislas Adotevi, Amartya Sen, Richard T. Ford e outros(as).

Também não o faz sem dados estatísticos e números significativos, recolhidos em fontes fiáveis, ou que permitem deduzir uma probabilidade confiável (e mesmo por isso falham dados africanos, relativos a países onde não conseguimos obter estatísticas sérias, ou quaisquer estatísticas). É com tal armamento que se propõe “debater vias de pensamento e ação para África se inserir no mundo sem subalternidades.” (p. 11) Porque um dos objetivos da desmontagem das imposturas identitárias é, precisamente, o de colocar os africanos em diálogo direto, sem contemplações, com o resto do mundo e consigo próprios, com a sua realidade atual (há outra?).

As conclusões a que chega e os raciocínios com que opera servem, pela preocupação com uma validade universal, outros campos culturais em várias semiosferas. A constatação geral de que “todas as civilizações foram produzidas por adição de parcelas” é um dos exemplos, devendo-se a isso (também) o desenvolvimento respetivo, por “suas capacidades de absorção e integração desses aportes.” (p. 19)

 

Se olharmos para as literaturas observamos o mesmo. Em primeiro lugar, que nunca nenhuma surgiu sozinha. Derivaram umas de outras e receberam tributos umas das outras – mesmo quando vinham de espaços políticos opostos. Em segundo lugar, que o seu desenvolvimento e a sua globalização (refiro-me mesmo à entrada em um circuito global dos mercados do livro) se fazem pela “absorção e integração desses aportes.” Foi, continua a ser, um dos garantes da globalização das novas literaturas africanas a diáspora intelectual e académica africana, com sua correspondente (e simétrica) absorção de ‘modos de fazer’ e de ler em circulação nos mercados principais ou canónicos (permita-se a extensão do conceito). O seu sucesso deriva de juntarem a tais saberes e fazeres uma africanidade, ou seja, uma originalidade que surpreende a sonolência das expetativas esgotadas, ou seja, dos cânones consagrados.

Ainda relacionando com as literaturas, as propostas do economista e político Jonuel Gonçalves, relativas à circulação de pessoas (e principalmente na CPLP), devem ser acompanhadas por idênticas (e adaptadas) propostas para a circulação dos livros, dos escritores e dos leitores. Ela ficou facilitada pelo funcionamento de uma rede mundial, da internet, mas não deixa de ser necessária a vivência no país do outro sem pesadelos burocráticos e sem corrupções para concessão de vistos e transporte de produtos culturais.

Também neste campo, é de notar como funcionam as fórmulas identitaristas. Elas reconduzem-nos ao papel passivo da literatura militante que, em vez de explorar na linguagem novas conexões, experimentar pelas intrigas novas hipóteses de leitura político-social, servem o fim de propaganda previamente estabelecido pela clique ou pela claque. Essa literatura de clique-claque nos afasta da percepção do modo de fazer e de ler típico de várias comunidades e, no geral, da semiosfera banto. A crioulização da semiosfera banto com a literatura globalizada produziu efeitos novos, ou renovados, avivando a forma de compor, a agilidade na metaforização (tradicionalmente codificada e conservadora), e trazendo-nos assim uma prática literária que, também ela, põe África no mundo sem subalternidades. O mesmo sucede com a música há muitas décadas. Ao contrário, dentro e fora dos países da África negra, a literatura militante dos identitários repôs uma poética internacionalista, meramente discursiva, panfletária, que vemos repetir-se em todo o mundo com a única mudança de motivos pouco mais que geográficos para dar a ‘cor local’.



[1] Lisboa: Guerra & Paz, 2020.