28.11.15

São Vladimiro abre novo conflito: os nostálgicos da URSS aplaudem


Artigos como este ressurgem de vez em quando nas redes sociais, desacreditando a coligação internacional na Síria e apresentando a Rússia como salvadora da humanidade naquele país concreto. 

São textos escritos, em geral, por pessoas e organizações por assim dizer órfãos da URSS e que sublimam a sua orfandade tornando-se reféns ideológicos de Putin. O atual sistema político russo, porém, o que tem de idêntico à URSS é o seu expansionismo e o uso de métodos parecidos com os do KGB para servir uma ideologia conservadora de direita, próxima do que defende hoje o Front National em França. 

É fácil mostrar o erro de leitura destes órfãos da guerra fria, mas é mais produtivo oferecer uma perceção lúcida e, portanto, alternativa do que perder tempo com balbucios trôpegos. 

A coalizão internacional atuou, sem dúvida, de forma lenta e podia já, creio, ter diminuído (se não neutralizado) a força do Daesh naqueles dois países (Iraque e Síria). As razões para uma lentidão possivelmente planificada são várias, incluindo os interesses das respetivas indústrias armamentistas - que, de resto, possuem maior acuidade na ex-URSS. Mas a redução da eficácia é também determinada pela compra de petróleo ao EI, da qual participa inclusivamente o opressivo regime dos Assad. Sim, hoje sabe-se que o próprio regime tem comprado petróleo barato ao Daesh, tanto quanto companhias petrolíferas privadas e pirataria diversa. Por esse motivo se puseram a circular notícias precisas sobre as compras de petróleo ao EI pelos Assad quando se despoletou a crise turco-russa. O Secretário de Estado dos EUA assumiu mesmo essa denúncia publicamente, conforme notícias de 14 de Novembro p.p..

Aproveitando-se da situação de ineficácia controlada, ou planeada, dois novos protagonistas entraram na guerra contra o Daesh: Turquia e Rússia. Ambos usando o mesmo alibi dos outros (ou seja: combater e derrotar o EI).

A Turquia, inicialmente relutante por causa da coligação de interesses entre os EUA e os Curdos, acabou cumprindo aparentemente os seus deveres enquanto membro da NATO e começou a bombardear 'terroristas' no Iraque e na Síria. Como os Curdos são considerados grupos terroristas há muitos anos, a Turquia bombardeou mais os Curdos do que o EI, para além de continuar a apoiar islâmicos moderados e Turcomenos.

A Rússia, quando caiu o último bastião do regime de onde os russos tiravam petróleo (v. a nossa mensagem anterior neste blogue), decidiu combater no terreno o EI, alegando que também é vítima de terrorismo (o que só descobriu nessa altura?). 

Assim que entraram viu-se que estavam lá para defender os responsáveis pelo problema sírio. Não é por parcialidade que o dito 'Ocidente' fala disso, principalmente a França e os EUA e todos os que pensam que Assad não tem condições para participar de uma solução política. A origem do problema está na reação do regime sírio às contestações pacíficas e espontâneas de muitos milhares de pessoas contra o regime opressivo dos Assad. Foi a dura e impiedosa repressão do regime sobre manifestantes pacíficos que deu o motivo aproveitado por guerrilheiros islamitas para se infiltrarem nas multidões e começarem a disparar, alegando que estavam a defender a sua vida e a sua liberdade de manifestação. 

Ignorando isso, como o EI também combate os Assad, a Rússia tinha o alibi necessário para defender o regime (a alegação de que, ao fazê-lo, fortalece uma força que também combate o Daesh) e, de passagem, bombardear os islamitas moderados, que representam uma alternativa credível ao governo sírio. A estratégia russa é clara: esvaziar o campo da oposição reduzindo uma oposição real apenas aos radicais, que todos querem combater. 

Para defender os seus interesses petrolíferos, então, os russos começaram a bombardear também os grupos armados que defendiam a população turcomena da Síria e, por isso, eram protegidos pela Turquia. Só por si, este facto constituia uma declaração de guerra. Cuja gravidade aumenta quando nos lembramos da justificação da Rússia para anexar territórios à sua volta (com as guerras e custos humanos que provoca), justamente a defesa das populações russófonas que a URSS deslocou para colonizar tais territórios. 

Assim, aqueles dois países que entraram no combate ao EI relutantes, naturalmente só para defenderem os seus interesses particulares mas criticando a 'ineficácia' do 'Ocidente' (essa velha rábula...), acabaram fazendo pior e, mais, criando um novo conflito que os opõe um ao outro. 

Sistematicamente os russos violaram o espaço aéreo turco e as queixas da Turquia foram várias, públicas e notórias, denunciando essa violação ainda antes da entrada oficial da Rússia no conflito. Quem olhe atentamente o mapa geográfico e político da zona de abate do caça russo, percebe a conveniência ou necessidade de a aviação moscovita sobrevoar aquelas cunhas de território turco junto à Síria. Mas, à maneira da URSS (impositiva e arrogante), os russos fazem-no sem terem antes obtido a concordância do governo local e desprezam totalmente as queixas turcas sobre violação do espaço aéreo - como se Ankara fosse capital de uma província, justamente, da ex-URSS. 

Além disso, a Rússia tentou condicionar Erdogan e alguns outros governos islâmicos através de laços económicos que lhe permitissem posteriormente fazer chantagem política. Como, de resto, faz com o gás e a Europa e sempre fez desde os tempos da URSS. Os russos chamaram Mahmud Abbas e Recep Tayyip Erdogan para a inauguração, com pompa adequada, de uma grande mesquita em Moscovo, largamente financiada por um oligarca do regime. Não sabiam, nessa altura, que estavam a convidar o perigoso presidente islamita, apoiante (segundo eles) do EI, não só dos 'terroristas' moderados? Nessa altura isso não importava? Os acordos comerciais recentes entre os dois países não foram promovidos e apoiados por Putin? O projeto de gasoduto não foi proposto por Vladimir Putin ao presidente turco após a inauguração da grande mesquita? Como só agora ganhou São Vladimiro essa febre de denúncia do papel da Turquia na guerra síria? 

Estamos, em resumo, com um historial bem diferente do que esses artigos tendenciosos pró-russos apregoam: a entrada da Rússia na guerra veio piorar a guerra, intensificá-la e criar mais um conflito, justamente com outro país que, tanto quanto a Rússia, só lá está para defender os seus interesses (mas, pelo menos, tem a desculpa de ser vizinho e defender, lá dentro, uma etnia muito próxima do seu povo). 

Em comum, os governos russo e turco partilham também um processo deliberado, controlado e acentuado de endurecimento dos respetivos regimes e consequente limitação de efetivas liberdades e direitos humanos. São países em forte retrocesso relativamente aos projetos de democratização que houve no seu seio. 

Em suma: países que, governados assim, onde se metem só trazem mais problemas e mais opressão do que tudo o que publicamente criticam. Não é por acaso, aliás, que as alianças russas no mundo são todas com regimes autoritários...