12.12.21

Comentários i-liberais - I

 

Apareceu-me um vídeo não sei já onde, acho que de agora, em que um político liberal assumido apresentava um programa de governo (sem qualquer medida concreta, palpável). Escutei com alguma atenção mas logo me fatiguei. Aquilo era demagogia típica de 'troca-tintas'. Geralmente liberal mas frisando que tinham preocupações sociais e ninguém ficaria pelo caminho, ou seja, querendo satisfazer a todos ao mesmo tempo, sendo liberal mas deixando no ar a ideia de que o liberalismo cuida da harmonia social e do apoio aos necessitados, etc., num facilitismo que esconde os contornos definidos de uma proposta política específica. 

Mas porque havia um liberal de mostrar tal preocupação com os desvalidos, em vez de mostrar que a libertação dos indivíduos e a diminuição das despesas estatais, a libertação da criatividade e do empreendedorismo face às barreiras burocráticas e ao engessamento legal, ajudaria a superar a crise atual? Porque um dos problemas dos liberais em democracia é o de gerar uma maioria de pessoas que se revejam nas suas propostas - ao ponto de votarem nelas. Porque muitas pessoas vivem vidas precárias, cada vez mais, e percebem as propostas liberais como uma via aberta pra quem já tem poder exercer em pleno a sua liberdade. 

Não gosto do liberalismo nem do neoliberalismo porque escamoteia a 'questão social'. Havia, nos regimes europeus anteriores ao liberalismo, na maioria deles, uma estruturação social que salvaguardava a proteção dentro da 'classe' (melhor dito: da corporação). Os trabalhadores agrícolas estavam perdidos, eram quase escravos ou mesmo escravos e, portanto, não tinham corporação. Mas os artífices, os que sabiam de uma profissão, de uma arte, em que se tornavam mestres, integravam-se numa corporação dos da mesma arte e protegiam-se uns aos outros, apoiavam-se. 

Por outro lado a Igreja, magramente que fosse, dava apoio a pessoas pobres, sopas aos pobres, ensinava meninos pobres a ler, recolhia os filhos que as mães não podiam sustentar e deixavam na roda nas paredes dos conventos e, por vezes, convenciam algumas velhas senhoras a serem caridosas. O sistema não resolvia nada no que diz respeito à miséria, mas diminuía seus efeitos entre os desfavorecidos e evitava que os profissionais caíssem, com os seus filhos, na 'classe' dos desfavorecidos.  

O mau desse corporativismo era que os filhos dos sapateiros tinham de ser sapateiros também, ou caíam na rua, no imprevisível, na desgraça ... ou conseguiam entrar na Igreja, ou migravam para as colónias. O liberalismo libertou as pessoas disso, cada um se tornou livre e responsável pela sua vida. O filho do sapateiro podia ser advogado, por exemplo, como podia ser outra coisa qualquer incluindo político (por princípio). Foi bom, nessa medida mesmo. Porém mau, porque a força protetora das corporações e da igreja foi diminuindo e muita gente ficou ao 'deus dará'. 

O socialismo trazia uma resposta parcelar ao drama: reorganizava a sociedade, não por corporações, artes e ofícios, mas por classes e sindicatos. Porém, reduzindo a nova arquitetura política e social aos operários e camponeses, não incluindo corporações de pequenos e médios burgueses, artífices, enfim, profissões relativamente livres das instituições e não exercidas por pobres assalariados. E procurando, como no marxismo, a sociedade sem classes - uma utopia conveniente à elite partidária que a geria. 

O fascismo e, de forma geral, o corporativismo, quase resolviam isso abrindo-se a uma organização e a uma representação política estruturadas em função das profissões e das áreas de atuação. Quando misturando-se com o municipalismo (refiro-me aqui especificamente à escolha de representantes municipais para os parlamentos e os conselhos regionais), acentuava-se a representação social e local, afastando-se da política real e quotidiana as grandes conglomerações ideológicas dos partidos, organizados em redes de influência (essas redes era o que havia de mais parecido com uma representação social e local nos aparelhos partidários). 

Quase resolviam, disse, porque, junto com os corporativismos e as representações locais, vinha um partido que dominava tudo, mandava em tudo, controlava tudo e tornava as assembleias corporativas, além de manietadas, pouco mais do que consultivas ou mesmo só consultivas (caso do salazarismo). Tal como o comunismo punha o partido no controlo efetivo de tudo, incluindo das assembleias de operários, moradores de prédios e quarteirões, camponeses, etc., assim fez o fascismo. 

Ou seja: as alternativas eram engolidas por partidos totalitários. Restava, novamente, o liberalismo, capaz de se reformar com o capitalismo, capaz de se transformar a si próprio o suficiente para sobreviver às mudanças e à evolução do próprio capitalismo. 

Do que ficou para trás veio a surgir, entretanto, uma estrutura que pode ser importante e não é propriamente liberal, mas também não é socialista: os Conselhos Económico-Sociais, onde a representação é por organizações económicas e profissionais (embora só as fortes...) e que permitem contornar as manipulações partidárias discutindo entre si e com os governos, diretamente, os interesses conflitantes (ou concordantes, o que é raro mas pode acontecer). 

A partir de um certo ponto, escutei com alguma pressa esse liberal demagogo e não me pareceu que ele pegasse na 'deixa' de tais Conselhos para mostrar como as democracias capitalistas acabaram gerando mecanismos de superação dos males trazidos pelo primeiro  liberalismo. Pode ser que tenha falado, mas não dei por nada.

O reforço desses Conselhos em certos governos revela a tendência para lhes reconhecer eficácia e representatividade nas articulações sociais, evitando (ou resolvendo, ou concertando) conflitos que os partidos políticos manipulam para seus próprios fins e que reabrem quando lhes dá jeito, a partir das assembleias ou parlamentos que dominam, por vezes em exclusividade. 

O perigo dessa estrutura corporativa no seio da democracia (sem feri-la nem substituí-la) é que ela pode, na prática, tornar inúteis as assembleias representativas e subordinar às orientações gerais dos Conselhos Económico-Sociais a própria gestão local. Ou seja, o perigo é, mais uma vez, que o regresso do corporativismo real seja manipulado para instaurar novos governos ditatoriais, encobertos ou não. Necessário se torna, por consequência, reforçar a representação da sociedade real, viva, quotidiana e local nos parlamentos e nas assembleias. 

Acho que esse é o desfaio decisivo das democracias atuais.