10.11.20

Uma nova lucidez

 

Trump perdeu - desse estamos livres. 

No entanto é mais um país dividido ao meio, como quando ele foi eleito, com a diferença que, uma das metades (a que ele chefiou) se puder anula a outra e tenta fechar a sociedade. O perigo é tanto mais real quanto mais um país está dividido. A popularidade que um político tão desastrado e ditatorial ainda alcançou mostra, por outro lado, que a alternativa a ele ainda não traz aquilo de que a sociedade precisa, ainda não unifica uma clara maioria (provisória, como sempre) em torno de um programa de mudança mais feliz, que aprofunde a liberdade e apure a representação. 

Precisamos de uma nova lucidez. 

13.6.20

Estupidez combativa e racismo


Algum tempo já passou desde que Netanyahu descobriu um golpe de Estado ao ser acusado de corrupção, colocando-se assim na longa lista de populistas e ditadores que não se dão bem com a democracia quando ela permite que os denunciem. Ou seja: quando é livre.

Desde então várias figuras ridículas, desta sociedade confusa de nações e países, reincidiram no mesmo tipo de retórica. Naturalmente incluo a mais recente caricatura, a do presidente brasileiro que, no auge da irresponsabilidade e sem soluções para o seu país, resolve negar a existência de uma pandemia que mata o povo brasileiro indiscriminadamente e a um ritmo cada vez mais acelerado.

Bolsonaro e Trump têm muito em comum, até porque o segundo, muitas vezes, imita o primeiro. Faz lembrar aquela passagem de um programa do Chico Anísio em que uma personagem dizia que gostava muito de ir aos Estados Unidos porque era tudo igual ao Brasil, havia as mesmas marcas, as mesmas fábricas e produtos, lá também havia Ford, lá também havia General Motors, tudo igual ao Brasil. Esse tipo de imbecilidade existe e Trump terá resolvido imitar Bolsonaro em vez de Macron porque Bolsonaro resistiu à invasão francesa da Amazónia.

Trump e Bolsonaro têm em comum o facto de criarem contra eles, em pouco tempo, uma frente significativa de vítimas, de inimigos, opositores, desfavorecidos: ou seja, uma maioria de rejeição - o mesmo tipo de maioria que levou à eleição do próprio Bolsonaro. O resultado está à vista nas grandes manifestações dos EUA, para as quais a morte de Floyd foi apenas um alibi. Em grau menor, dadas as circunstâncias locais, é de se reparar em como, com tão pouco e em plena pandemia, foi fácil juntar manifestantes em muito maior número contra Bolsonaro do que a seu favor.

A razão de ser está, na minha opinião, nessa estratégia política suicida, estúpida, que todos os dias arranja novos inimigos para disfarçar uma total incompetência e uma total insensibilidade política e humana.


Em Portugal, onde os políticos dominantes não seguem tal estratégia, resolveram vandalizar uma estátua do Padre António Vieira. Igual estupidez e falta de estratégia. Em comentários, no facebook, jovens racistas angolanos negros chegaram a dizer que isso era tão justo quanto o derrube das estátuas de Hitler, Salazar e Saddam Hussein. Portanto, concluímos: o Padre António Vieira teve, no seu tempo, um comportamento tão grave quanto o desses ditadores e genocidas (sim, Salazar também, promovendo uma guerra colonial inútil - a última - onde morreu gente só para ele continuar a negar o processo histórico e a realidade internacional que o determinava). Ficamos a saber. Interessante: esses mesmos comentadores do facebook criticam o racismo na Europa e EUA e defendem, nos seus países, a discriminação de brancos e mestiços, equiparados ao veneno da cobra como no Ruanda fizeram com os tutsis por eles serem mais claros. São, na verdade, não só ignorantes e mal intencionados, mas populistas e ditadores e genocidas em potência, quero dizer, que ainda não tiveram possibilidade de realizar-se.

O vandalismo sobre tal estátua, porém, não revela só ignorância e oportunismo. Atingiu a maioria dos portugueses na sua memória histórica mais íntima, mais querida, enfim, num dos nervos da sua identidade enquanto portugueses - identidade a que têm direito, sendo embora polémica, porque todas o são, uma vez que há apenas acordos momentâneos e constantemente negociados, não perfis fixos identitários.

A figura atingida era a de um homem mestiço (de 'branco', 'índio' e 'negro') que, sendo embora do seu tempo e se ajustando a ele (daí a defesa da escravatura do 'negro' para manter o Brasil, o que se pensava indispensável e não era), tentou impedir (como, em geral, os jesuítas) a escravatura dos índios e denunciou frontalmente a corrupção. De resto, será de perguntar: quantos e quem denunciaram a escravatura nos séculos XVI e XVII? Não me refiro à denúncia dos 'excessos', como a que foi feita com muito zelo e razão pelo rei do Kongo, D. Pedro I depois do batismo, e também esse outro rei malogrado (só reinou três anos), D. Pedro II Afonso. Refiro-me à denúncia do sistema escravocrata, à rejeição da existência e da comercialização de escravos. Houve um português, por acaso, que no século XVI denunciou a escravatura no ponto nevrálgico e fulcral e o seu (meio) irmão foi Mem de Sá, que os brasileiros conhecem. Refiro-me ao poeta Francisco de Sá de Miranda, que fez a denúncia em dois versos arrasadores:

Almas vindas do céu
Vendidas em lanços na praça.

Negros? Não: almas, seres humanos, pessoas.

Claro que há portugueses racistas, afirmar isso é uma banalidade (a repetir sempre que alguém a esqueça), há racistas em todos os países e de todos os tipos e há muito racismo em muitos países africanos e na Índia, e na China e na Rússia e na Polónia e no entanto só o vemos na velha Europa ou nos EUA - onde também existe, repito. Essa duplicidade já revela que a denúncia do racismo não se prende, muitas vezes, com uma proposta de superação do que denuncia e, menos ainda, do racialismo.

Mas a memória comum do Padre Vieira em Portugal não é racista nem racializada, como a do Marquês do Pombal e de vários outros (incluindo António Costa, o primeiro-ministro atual). Não por branqueamento, isso também seria criminoso (aliás é comum referir-se que o Padre Vieira era mestiço), mas simplesmente porque se pensa no que fizeram e não na cor da pele. Os portugueses que estudaram Sermões do Padre Vieira na escola ainda os têm na memória, ainda hoje são marcados por eles e guardam uma grata lembrança do autor por causa dos seus sermões, do seu estilo vivo e da coragem na denúncia da imoralidade vigente. Ora foi essa memória, querida e não racial, que a vandalização da estátua provocou, afrontou, sem qualquer sensibilidade ao outro. Total incoerência, visto que tal ato pretendia legitimar-se pela reclamação da sensibilidade ao outro.

A solução, natural numa sociedade democrática (onde há separação de poderes e o judicial exerce a sua jurisdição), vai ser processada, como também (penso) nos EUA se está a processar a investigação e se processará o julgamento dos policiais envolvidos na morte de Floyd.

A postura consequente é a dos que ficam atentos a esses procedimentos para não deixar que eles sejam parciais ou deturpados. Aí é que se corta o mal pela raiz, nessa atenção constante à imparcialidade como padrão de justiça para todos. Criar um vendaval de manifestações, aliás com intuitos discutíveis e não assumidos, é levar-nos a esquecer o problema: um julgamento justo e imparcial dos policiais envolvidos na morte de Floyd.

Quanto à escravatura, a postura militante correta é a que olha para as rotas da escravatura de hoje e as denuncia ao mundo. Se o propósito é, com toda a razão, dar cabo da escravatura, temos que persegui-la onde ela ainda existe em vez de nos distrairmos com fantasmas - aliás rentáveis.

A inflamação leviana e superficial com que muitos, hoje, com paternalismo e oportunismo, pretendem ser 'negros' e não ser racistas (a racialização do discurso, no entanto, é já racismo), vai trazer, em Portugal como no resto do mundo, votos à extrema-direita e às simulações de extrema-direita como são as de Bolsonaro, Trump e André Ventura, seguindo os modelos primários e boçais dos anteriores. As pessoas não tendem, na sua maioria, a votar em populistas, isso acontece porque sentem que as agrediram, ou ludibriaram, e os criminosos não foram chamados à responsabilidade. O populista, porém, comete o mesmo erro dos que protestam dizendo que as vidas negras importam. Eles dizem que os brancos, ou os portugueses, ou os europeus estão a ser insultados e agredidos por negros e por ciganos. Ora, os agressores terão de ser tratados como agressores, em função do seu crime; e os agredidos devem ser tratados como agredidos ou injustiçados, em razão das agressões. Se eu defendo que uma vida 'negra' importa e não uma vida humana, vou deixar passar a morte de uma vida 'branca' porque (por exemplo) foi um 'branco' que matou o outro. O mesmo sucede, com os racistas brancos, quando um 'negro' mata outro: encolhem os ombros, isso é com eles, que se matem. O que me preocupa são as vidas das pessoas e o que está em causa são as pessoas e suas vidas e seus direitos inalienáveis de pessoas, seres humanos. A única maneira eficaz de combater o racismo é exigir que os direitos humanos sejam respeitados em qualquer situação e sempre que um ser humano é ofendido na sua existência. O resto, por mais que se note, não deixa de ser o resto.

Não faz, portanto, sentido, é mesmo continuar perigosamente o jogo do racismo, argumentar como resume bem o escritor angolano João Melo, seguidor do cânone que define: "todo o mundo sabe que, biologicamente, “raça” não existe. Mas trata-se de um conceito (ou, pelo menos, um argumento) social cuja operacionalidade, usada negativamente há séculos, é inegável. Não basta dizer que raça não existe, para que o racismo desapareça. Os factos estão aí." Também não basta dizer que raça é um conceito social para que o racismo desapareça, pelo contrário, continua a dar azo ao fundamentalismo negro, aos neonativismos xenófobos, aos fundamentalismos brancos dos europeus, a toda uma lista execrável de potenciadores de ódios raciais. O mal está, mesmo, no uso de um conceito equívoco. Há diferenças, sim, mas elas não são nem de 'raça' nem de 'espécie', são diferenças de modulações culturais dinâmicas. A regulação dessas modulações, em regimes de liberdade, resume-se à exigência de iguais direitos para todos os homens e à pressuposição de que todos os homens são livres (excetuados alguns direitos retirados a presos por delitos comuns, não políticos nem partidários). São, não 'devem ser', são, só temos que respeitar a sua realidade, ou seja, a sua liberdade.

O comportamento irresponsável e ignorante que levou à vandalização da estátua do Padre Vieira é do mesmo tipo dos líderes atuais de extrema-direita (e de Hitler): eliminar os vestígios do 'outro', ainda e sobretudo quando esse outro se parece connosco - nada de confusões. Foi o mesmo que fizeram as elites 'brancas' norte-americanas ao chamarem 'negros' a negros e mestiços: transformarem tudo em outro e negarem direitos ao outro. Os portugueses em geral e os 'brancos portugueses' têm direito à sua memória, onde incluem pessoas com genealogia 'negra' ou 'índia'. Mas isso é negado quando se vandaliza uma estátua feita com dinheiro público, de contribuições (impostos) pagas pelas pessoas que votam. E aí está o ponto: votam. Faça-se, em vez de vandalizar, um grupo (partido, por exemplo) que se candidata propondo retirar todas as estátuas de pessoas que possam ter tido alguma relação com a escravatura (incluindo Voltaire, os Faraós do Egito e a rainha Jinga de Angola). Espalhe-se esse partido por todo o mundo e, depois, caso tenham sucesso, tentem levar a ONU a determinar a extinção dessas estátuas em todo o mundo. Ou seja: atuem dentro das regras democráticas, criando grupos de opinião e candidatando-se em eleições livres.

Ao fazer o que fez, quem vandalizou não terá sequer entendido que estava a diminuir a sua base de apoio e a empurrar muitos portugueses, abertos e acessíveis à partida, para um voto xenófobo, quanto mais terem compreendido que estavam a fazer um julgamento anacrónico. Muitos portugueses irão fazer o que outras maiorias fizeram já. Ofendidos na sua memória histórica, nos interesses gerais e comuns, ou na sua identidade (que não concebem como 'negra'), cairão na tentação de responder ao racismo com o racismo e à agressão com a agressão e, portanto, vão votar em quem diga aos vandalizadores da estátua: não estás contente com este país vai para outro. Ninguém te pediu para vires. De resto, é o que têm dito muitos dirigentes e destacados vultos de países africanos aos que se queixam das políticas por eles seguidas, algumas delas claramente xenófobas, autoritárias, racistas, tribalistas e (mais raramente, é certo) genocidas. O mesmo, exatamente o mesmo, que disseram Le Pen e seus seguidores...