13.7.17

A falácia do “racismo inverso” - PÚBLICO


Continuamos a trabalhar sobre sofismas, quanto a isto também (siga a hiperligação no fim deste texto). E a legitimar a continuidade de 'racismo' sob o argumento da compensação. 


Vejamos alguns equívocos. 


1) A autora cita anúncios que bem conheço. Confesso que, por vezes, interrompo a leitura dos jornais brasileiros do princípio do século XIX porque me mete nojo aquilo tudo. Tenho de parar por um tempo, espairecer, pensar e repensar como foi possível tudo isso e o que foi tudo isso. Depois regresso. Mas não sei: a) quem eram as pessoas que punham os anúncios; b) filhos e netos de que heranças, incluindo as genéticas; c) a quem compravam os escravos aqueles que os vendiam e aqueles que os levavam de uma costa para outra compravam a quem. Daqui derivam algumas questões que vão voltar ainda.


2) Cito: "[a Revolução Industrial] originaria o fim legal do tráfico, mas não o da Escravatura, que servia a industrialização e o desenvolvimento a Ocidente por mais algum tempo." Continuando a existir situações de escravatura denunciadas internacionalmente e praticadas por árabes; continuando a haver situações de escravatura, para dar outro exemplo, em várias zonas da China, onde os jovens têm uma expectativa de vida de poucos anos; há condições para reduzir a questão ao "desenvolvimento a Ocidente por mais algum tempo"? Não foi, certamente, isso que prolongou a escravatura, por exemplo, em África e entre os árabes. 


3) Cito: "é deste contexto que surge o que denominamos de racismo, uma opressão histórica, violência sistémica, uma relação de poder e de profunda desigualdade. E é por isso que o racismo está intrinsecamente, e historicamente, ligado à inferiorização dos negros (e não dos brancos)." O contexto em causa é o do tráfico transatlântico de escravos. Mas o racismo, infelizmente, é muito anterior ao tráfico transatlântico, tanto quanto "opressão histórica, violência sistémica, uma relação de poder e de profunda desigualdade." Praticamente, num espaço-tempo de onde haja muitos escritos há passagens escritas que manifestam racismo e discriminam em função da 'raça'. O racismo não nasce, portanto, do tráfico de escravos - tanto quanto a escravatura não nasceu (nem, realmente, morreu) aí. Não podemos reduzi-lo à "origem do capitalismo", nem ao seu "desenvolvimento" tardio. Pelo contrário, sabemos que, em parte (na parte, justamente, que aos EUA diz respeito), foi o desenvolvimento do capitalismo que, pelos seus próprios interesses (alargar o mercado de consumo, obter mão-de-obra sem compromissos além do curto salário, etc.), levou à abolição da escravatura. A guerra civil nos EUA foi uma guerra de agrários que não se integravam no processo capitalista (e defendiam a continuação da escravatura) contra os industriais que precisavam de novas regras de trabalho e de rever os custos da produção de riqueza, bem como do seu consumo.


4) "há gente que usufrui ainda hoje do privilégio da herança escravocrata". Logo em seguida, essa "gente" é conotada com os europeus, ou brancos, e os escravizados, uma vez mais, com os negros - os tais dos anúncios, onde havia outros anúncios que, por exemplo no Jornal do Comércio do Brasil, ofereciam e alugavam pessoas livres vindas de Portugal - aspetos que não têm sido considerados. Houve, de facto, sobretudo no século XIX, por generalização a partir de um tráfico feito entre África negra e Américas, uma conotação entre negro-escravo e branco-escravocrata. Mas essa generalização foi abusiva (houve escravos brancos no Egito, como lembra Cheikh Anta Diop; houve escravos orientais na América e em Portugal e escravos oriundos do Norte de África em Portugal também) e, portanto, não podemos basear-nos nessa para raciocinarmos hoje. Ora, a conclusão a que chega a articulista baseia-se exclusivamente nessa generalização abusiva. Claro que a maioria dos 'brancos' não beneficia hoje da herança escravocrata, nem beneficiou ontem, pois foram vergonhosamente explorados por empresários depredadores, que também faziam filhos em muitas mulheres pobres como fizeram em escravas. E há os exemplos contrários, que me fazem re-tornar um ponto acima: quem vendia os escravos aos traficantes? Quem distorcia relações sociais e familiares arcaicas e hábitos de guerra arcaicos para criar escravos e vender? Essas pessoas não tiveram descendentes? 

5) A conotação entre cor da pele e situação social (branco = escravocrata ; negro = escravizado) é perigosa desde logo porque se alicerça numa categoria sem definição rigorosa possível: a de 'raça' em função da cor da pele - ou em função de qualquer outro aspeto; os seres humanos são uma espécie dentro de uma raça, não contêm raças entre si. A rentabilização dessa conotação sem fundamento fica explícita aqui: "Um negro pode discriminar e ser preconceituoso com um branco, mas não pode ser racista com ele, porque este último não tem estruturas (históricas, politicas, económicas e sociais) que o oprimam com base no seu fenótipo." Uma grande confusão de conceitos, categorias, verdades e inverdades históricas e biológicas. 


Já li, em vários autores, frases idênticas. O que elas escondem, na verdade, é um mecanismo retórico de culpabilização dos 'brancos' (ou 'europeus', ou 'ocidentais') para, sobre essa forma de legitimação, justificarem novas formas de discriminação, totalmente livre, desenfreada, em nome da 'compensação' económica, social e política. É esse mesmo discurso que está a tentar criar as tais "estruturas que o oprimam" e que o 'branco' não teria. Essas frases promovem, mesmo, 'racismo inverso', discriminação do 'branco' (afinal: do 'outro') por sua vez des-criminada. Não há que escamotear. Eu fui vítima já, mais do que uma vez, de racismo por ser 'branco', fui discriminado e insultado por ser branco, perdi empregos por isso e nunca beneficiei da escravatura em lado algum; para isso acontecer, algo existia na sociedade que permitia o acontecimento, não é? Superei facilmente as atitudes racistas quando protagonizadas por pessoas ignorantes e ressentidas, pois entendo que a ignorância sustenta atitudes injustas - ainda que não as legitime. Mas não posso deixar de rejeitar essas atitudes e, sobretudo, quando são protagonizadas por pessoas que, pela sua formação, pelos estudos que fizeram, pelas exigências intelectuais que delas se esperam, vêm reclamar de 'brancos' que eles aceitem ser discriminados por serem 'brancos', ou seja, pelo fenótipo, uma manifestação visível e detectável de uma diferença genética (no caso, a que se prende com a pigmentação, por sua vez relacionada com respostas da raça humana a ambientes marcadamente diferentes, por exemplo com maior ou menor exposição ao sol para processarem vitamina D). Não foi para isso que se combateu o racismo, foi para passarmos a dar-nos como pessoas, independentemente dos acidentes genéticos e ambientais.  


Sou, portanto, solidário com pessoas discriminadas pelo seu fenótipo (e é logo que é olhado como 'branco' ou 'negro'), pela sua religião, pela sua origem, pela sua filosofia. Nunca serei favorável à des-criminação (ou descriminalização, no termo pretensioso mais usado hoje) do racismo, nem a qualquer estratégia de legitimação da discriminação racial.





A falácia do “racismo inverso” - PÚBLICO