31.3.24

Sobre universalismo hoje


A denúncia e rejeição da chamada cultura woke (na continuação da influência anglófona - e sobretudo dos EUA - sobre a cultura mundial adotou-se mais um termo típico dessa semiosfera) alarga-se e cada vez há menos pessoas amedrontadas, que se atrevem a desmontá-la publicamente. É de saudar esse movimento de retorno à lucidez e à liberdade de pensamento. 


Vejo, porém, que, muitas vezes, a denúncia da cultura woke - uma cultura de terra queimada - coloca no vazio que ela deixou o mesmo que havia antes. Isso é mau sinal. Porque o contributo válido que os movimentos relativistas (e não os identitários) nos deixam é o que nos reforça os descondicionamentos que tornam mais universal, apurada e humana a reflexão. 


Parece, portanto, necessário criar alertas para os malefícios do retorno a visões estreitas anteriores. Duas observações, pelo menos: 

1ª - a cultura identitarista, que o relativismo promoveu ao combater o universalismo, é comum a movimentos de esquerda vulgar, imbecil sem dúvida, impreparada, que substitui o raciocínio pelo imediatismo ativista. Mas esses mesmos defeitos são comuns à direita chamada 'populista' (como se não houvesse esquerda populista). Não há diferenças políticas significativas entre os identitários do 3º mundo e os identitários europeus, entre a extrema direita europeia atual, ou a direita populista europeia, e os defensores do fundamentalismo banto, islâmico, árabe, étnico e vários etc's. E se alguém entender que haja, deixe comentário aqui, posso explicar em que medida e porque não há. 

2ª - o relativismo e o identitarismo, ou genericamente o culto das especificidades, ignora que somos todos seres humanos e isso tem implicações políticas também, não só epistemológicas. O universalismo humanista anterior estava um tanto esclerosado e beneficiava mais da retórica racionalista que das experiências, hipóteses e investigações científicas contínuas. 

É preciso refundar o tal universalismo. E em que nos podemos basear? Em duas ou três verificações, pelo menos: 

1ª - a mais antiga: todos os seres humanos apresentam traços culturais comuns. Por exemplo questões comuns (as respostas específicas são respostas a questões comuns), uma delas, a mais antiga talvez, Deus ou a religião. Mas outras: a questão da liberdade, a do caminho a seguir, a do poder. Outras em que nunca pensamos e nos determinam: para que serve a sequência dos dias e das noites? Como viver melhor? Para que serve contrastar e verificar semelhanças? As respostas específicas não variam tanto de etnia para etnia, ou de sexo para sexo, ou de país para país, quanto de grupos e pessoas dentro de cada comunidade e entre agrupamentos humanos em diálogo. Mesmo onde não há liberdade, mesmo onde uma opinião domina e tenta abafar as outras, as outras existem, ainda que só em pensamento, ou em rumor, ou falando baixinho em círculos restritos, ou secretos, como sucedia nos tempos da Inquisição em parte da Europa. 


Para reencontrarmos a universalidade humana há utensílios indispensáveis e seguros. A ciência, com destaque para disciplinas como a neurobiologia, a genética, a antropologia comparativa e evolutiva, a informática, as ciências cognitivas. 

Para que um novo universalismo nos devolva uma perceção fundamentada do comum e do específico é preciso, também, que a política de apoio à cultura e, sobretudo, à ciência e à tecnologia, venha estimular as ciências que nos devolvem à humanidade concreta, pesquisável, às ciências que nos estudam pelo que temos biologicamente em comum, pelo que também temos em comum e de diferente, biologicamente, com os animais, e que deteta as diferenças a levar em conta - por exemplo pela medicina, pela farmacêutica, pela componente de extensão nas ciências aplicadas.


É todo um programa político e também de política científica a erigir e a erigir com sentido de liberdade. Numa liberdade alicerçada ainda, no que diz respeito às políticas e às ciências, sobre o comparatismo salutar, inter e transdisciplinar, inter e transnacional, ou seja, orientado por essas ciências acima nomeadas. É preciso recuperar as comparações, pois o relativismo destruiu até o comparatismo, usando-o para tornar arbitrárias todas e quaisquer hipóteses que não fossem de contestação e de afirmação - meras - de poderes exclusivamente partidários.


Esta é a principal tarefa política e social do nosso tempo. Há uma segunda, mas estritamente pessoal, única para cada um de nós: a recuperação disso mesmo, da vida pessoal, intransmissível, eventualmente e em mais do que um sentido: espiritual, daquela espiritualidade que integra ou inclui o ateísmo. 


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