6.6.23

O pós-lítico

 

Pouco a pouco, a humanidade vai finalizando a extensa etapa neolítica e, com isso, vai se reestruturando, ou pressentindo a necessidade de o fazer, ou sentindo, pelo menos, a desadequação dos modelos e valores líticos. Acontece em todos os campos de atividade. 

Uso dois para exemplo. 1) O político, focado na representatividade; 2) O artístico, focado na recoleção e refuncionalização. 

1) As diversas formas de representação política foram se aprofundando, principalmente nas democracias. A representação orgânica, apesar de manipulada por regimes totalitários e por isso rejeitada, era útil (e em parte ainda o é), sendo por isso recuperada através de órgãos como Conselhos de Concertação Social ou Económica, em democracia mais consequentes do que as assembleias partidárias, cuja função hoje tem sido mais, nesse aspeto, vigiar, aprovar, ou reprovar - uma função idêntica à dos reis em monarquias modernas ou liberais, apenas com o redutor acrescento da subordinação a estratégias meramente partidárias. O crescimento do poder local, o reconhecimento da sua representatividade, remete-nos de novo para a recuperação, em democracia, de um modelo orgânico de representação e de concertação política real. 

Entretanto, crescem os empregos e os nómadas digitais, as facilidades de deslocação para mudança de residência, como também a mobilidade financeira pela facilitação das operações cambiais e bancárias. Aumentam, por igual, os empregos alternativos, subempregos e desempregados que se 'remedeiam', se 'viram', com pequenas atividades e rendimentos, as consequências da automação máxima das atividades mecânicas, antes asseguradas por artesãos (hoje reduzidos ao artesanato personalizado, muito mais digno, mas menos lucrativo para empresários). 

O modelo tradicional de casamento monogâmico esboroa-se em paralelo, continua a esboroar-se desde a aceleração do quotidiano provocada pelo domínio absoluto das indústrias e do comércio de massas, com seus horários, pressas e pressões e suas linhas de produção contribuindo para o hábito de alinharmos o pensamento, colocarmos tudo em prateleiras. Estar casado ou não, ter várias parceiras ou vários parceiros, é uma questão de prateleiras, indiferentes umas às outras e os apertos dos horários e das tarefas urgentes não nos permitem já manter acesa durante algum tempo a chama de uma paixão primeira, mais funda, mais forte. Passamos os dias (e por vezes as noites) com outras pessoas. O parceiro(a) passa a ser apenas o da rotina dos sonos ou, quando muito, o dos fins-de-semana entediantes em família, das discussões sobre o destino a dar ao dinheiro e à falta dele, por vezes aos filhos... Isso traz implicações políticas, além de estimular a anulação do pensamento por alinhamentos prévios, típicos da produção em série. Com tempo e o avolumar das tensões, do mal-estar, do sentimento de não nos vermos representados e realizados, isso vai nos levar a pensar no que fazemos e como. Porque somos escravos do trabalho? Onde começou tal escravidão? Não foi na Bíblia, não. Vai ter de se repensar a estruturação do poder e da legitimidade, mas sobretudo da representatividade quealicerça e efetiva poder e legitimação, que não podem continuar a governar-nos metendo-nos em becos sem saída, em prateleiras e quartos. 

As estruturas de mando e representação, com recuos e avanços, foram seguindo modelos muito primitivos, titubeantes, oscilantes, mas que se definiram melhor e se complexificaram com o neolítico, a concentração urbana e de bens, uma conceção integrada e alargada de defesa do grupo, a sedentarização e a estabilização tendencial das hierarquias sociopolíticas. A monarquia tornou-se uma espécie de espelho e regime natural da sociedade humana, que no entanto suportava bem repúblicas autónomas, que tendiam para impérios (mono-árquicos) conforme se estendiam e enriqueciam mais. O que as monarquias tinham de melhor era uma visão orgânica e autárquica da sociedade, embora gradualmente se centralizando até ao ponto de sistemas absolutistas que as implodiram em repúblicas e partidismos por reação, deixando a estruturação social tradicional implodir também, com as pessoas isoladas perante o Estado - o novo Absoluto. Mas as monarquias foram superadas, se olharmos mais fundo, não pelos liberalismos, nem pelo assassínio dos reis, foram superadas pela produção em série, pela atribuição de categorias e estantes meramente em razão de reduzirmos os custos e aumentarmos os ganhos. Isso é necessário para gerir uma empresa, mas é ruinoso quando se exporta para fora da gestão de empresas. Ora, uma monarquia pode ser considerada uma despesa dispensável e, no entanto, volumosa. Então acaba-se com ela e ficam-nos os reis da banca, do aço, do petróleo, das várias prateleiras da produção acelerada.

O recente modismo dos regressos radicais, extremos, muito ao para trás no tempo, que impera nas dietas, nas roupas, em certos costumes e na recuperação de rituais arcaicos, implica o repensar do próprio processo que trouxe a humanidade aos dias de hoje, do que se pensa e pensava serem os seus fundamentos. É salutar, mas caminhamos a passos largos para uma política e uma humanidade pós-líticas e ainda não vislumbrámos as adequadas estruturações políticas e representativas.


2) As artes estão exatamente no mesmo ponto, embora com o seu nível próprio de complexidade, mais intenso e diversificado, por vezes ainda mais avançado. 

As instalações, performances, ready-mades, colagens, articulam-se com práticas antigas, mas recontextualizadas, de recolha e refuncionalização de elementos contextuais. A diferença consistiu somente - sobretudo no século XX - na massificação e no descaro dessas práticas, tornadas igualitárias (qualquer um pode praticar, independentemente das consequências estéticas e éticas), de todos para qualquer um, indiferenciadas, aleatórias e, sobretudo, feitas em bruto, sem preocupação de esconder o 'segredo' que mitificava o 'génio', mais que individual, pessoal - e, por tanto, intransmissível. A reciclagem de que tanto fala a ecologia, com defensores das energias renováveis, e similares atitudes ou posturas que parecem constituir soluções (e podem mesmo ser), em verdade estão a revisitar os fundamentos, os começos, da época lítica e sobretudo a passagem do paleo para o neolítico. Em arte, as disciplinas híbridas acompanham criativamente e mimetizam essa revisitação. Porém, tanto quanto na estrutura de representação e na de poder, não se deu passo para o pós-lítico, ainda vivemos a funda e vagarosa transição. Somos cães domesticados: ainda estamos a alçar a pata para marcar terreno sobre o asfalto e o 'concreto'. 

Como sabemos estudando literatura, os mimetismos, hibridismos, as colagens, o culto da performance e de ready-mades verbais acentuaram-se nos séculos XIX e XX nos países mais desenvolvidos técnica e economicamente, sobretudo nas democracias do hemisfério norte, mais ricas. Mas eles eram e são constituintes de qualquer arte e mimetizam os mesmos processos de recolha, armazenamento, reaproveitamento. São processos que, intensificados, vieram a dar em sistemas e estruturações de representação e de poder típicos do neolítico, desse neolítico ainda presente. 

Muito lentamente algumas manifestações artísticas procuram mimetizar a maleabilidade, portabilidade, e dinamismo dos seres humanos nas sociedades atuais e a sua instável e insatisfatória (por enquanto) sociabilidade. Há experiências híbridas entre o teatro, a performance, a mímica, o episódio curtíssimo (sketches, cenas, vinhetas), com pessoas por vezes ligadas a mesas de mistura que ampliam e remisturam a produção do performer e a reação do público. São exemplo de mimetização dessa maleabilidade, portabilidade, informatização e dinamismo social instável. 

Experimentações anteriores em três ou quatro décadas, como as dos motores textuais e da ciberliteratura, tentaram chegar ao limite possível e impossível das típicas montagens, recolhas e colagens que foram a base das artes humanas desde o neolítico. Os motores textuais, por exemplo, dessacralizaram as reestruturações, colagens e montagens pela reprodução, sem critério de escolha, de todas as combinatórias possíveis de um determinado agrupamento de palavras, em frase ou mesmo sem frase, como numa linha de produção aleatória, sem definição de série. A ciberliteratura mostrou que o próprio texto pode ser mutável, inesperado, e variar, não só de pessoa para pessoa, mas com a mesma pessoa, quase materializando um procedimento cerebral e neurobiológico básico do funcionamento humano. Film-letras - antepunha e antecipava Augusto de Campos. Essa experiência aproximou-nos - arrisco dizer - da expressão da vivência de hoje, em constante mutabilidade, instabilidade e sem tábua de salvação. No entanto era controlada pelo programador de software

A maior parte da produção literária continua se fazendo como se tais experiências não fossem de levar em conta, não mexessem com nada. Por vezes escrevem-se poemas que são fragmentos, anotações, sem preocupação de unidade, acasos, mas sofrem da mesma ausência de escolha, propósito e ressignificação que inviabilizou as experiências informáticas. E também são fragmentos frouxos, tíbios, frágeis mas não delicados, pouco mais que manifestações de vontade de dizer, próprias de adolescentes que aprenderam a falar mas ainda não a discursar ou declamar. Então continuamos a ler uma poesia costumista, intimista, penumbrista, com versos aparentemente modernos (a modernidade de há cem anos atrás) e no entanto ritmados para sugerir ambiências recolhidas, particulares, entre gaveta e armário, com metáforas polidas e qualquer coisa de crocante nas pastilhas elásticas. Esse costumismo prosaico e versicular irá manter-se, amanteigado, cremoso, luxuoso, ou aparentemente irrequieto, com seus resquícios de grão para que sugira sementes, algum erotismo mais atrevido na aparência (mas de facto banalizado), aleatório no bem-estar típico das sociedades com melhor nível de vida e liberdade. Só quando se passar a uma humanidade e a um quotidiano totalmente pós-lítico se perceberá quanto e em que medida, ou qualidade, foram pertinentes as experiências cibernéticas e performáticas, tateando as possibilidades de uma expressão artística pós-lítica. Até lá, tais experiências não se devem também tomar como mais do que isso. 


30.4.23

Universidade e Política: desfazendo equívocos

Aqui e além vemos repetirem-se chavões sobre as relações entre universidade, ciência, política e partidos políticos. É a maneira destas sociedades 'de massas' funcionarem, tipo pasta, mistura-se tudo, indiscriminadamente, atinge-se um chavão e depois lutamos uns contra os outros através de chavões. É esse procedimento o principal aliado dos inimigos da liberdade e da democracia, porque não há liberdade de chavão e o voto de clichê é a recusa de fazer escolhas. 

O mesmo sucede com o tema da Universidade e da Política. Tornou-se canónico dizer que "o poder" (outro chavão que dá muito jeito aos trapalhões do pensamento), "o poder" não deve interferir na... escolham: academia, universidade, ciência. Deve, no entanto, financiar. 

Quero pensar nisto sem me referir a casos episódicos, outro truque para baralhar as pessoas, que é o de usar casos episódicos (quero dizer: não elucidativos do que está em debate, mas sim de boas ou más condutas deste ou daquele protagonista), usar casos episódicos para neutralizar argumentos e propostas que vão muito para além deles. 

Comecemos por clarificar isto. Se o comunismo falhou na Rússia, podia ser episódica a falha. Se falhou em todo o mundo, se nunca se realizou a progressão que os primeiros comunistas imaginaram e se manteve sempre válida (a caminho da sociedade sem classes), então são demasiados casos episódicos e temos de postular a hipótese de o comunismo ser impraticável. 

O mesmo para os nacionalismos exacerbados, os fundamentalismos, identitarismos, etnicismos e tribalismos. Se todos esses 'ismos' produziram guerras, violência, repressão, mortes indiscriminadas e outras que, discriminadas, não deviam ser mortes, então será de pensar que os 'ismos' não-comunistas provocam igualmente uma série tal de distopias que se tornam, para a sobrevivência da espécie e por questões éticas, impraticáveis.

O que nos levaria a pensar que o mal está nos 'ismos'. É, porém, mais funda a raiz do mal e os filósofos até hoje mal se entendem sobre isso. O mal está numa atitude que visa condicionar, limitar, dirigir, encadear a perceção e o pensamento. Quando certa esquerda, com o lamentável e distópico Chomsky, falava em 'pensamento crítico', ingenuamente muitos pensaram que se tratava de ser crítico relativamente a essa atitude que visa manipular os outros para fins de poder, tal como a publicidade os manipula para fins comerciais e pior ainda, porque supõe normas repressivas, que forçam, quando a publicidade aposta apenas no convencimento, na sedução, na manipulação afetiva, na sua retórica própria, sofística sem dúvida, mas visa tão somente convencer-nos a consumir produtos de uma dada série. 

Quando se tornou consensual que "o poder" não devia exercer-se sobre as universidades, a ciência, a filosofia, as artes, até parecia liberalismo: o Estado não interfere. Mas não era, porque o mesmo "poder" ou "Estado" devia sustentar tudo isso. Ora, esse "poder" ou "Estado" é financiado por todos, porque todos somos obrigados a pagar impostos e a ceder rendimentos comuns (por exemplo, o petróleo angolano - ou de qualquer outro país - é de todos os angolanos, mas apenas favorece os que efetivamente controlam o tal "Estado", ou seja, os angolanos cederam para essa elite político-partidária um rendimento comum, uma cedência de resto sem qualquer alternativa para além da morte). 


Se o dinheiro que sustenta "o poder" é de todos e se "o Estado" deve financiar sem intervir usando esse dinheiro comum, quer isso dizer que os tais todos, o povo em geral, abdicam de decidir - nesse campo específico - para o que se deve usar o seu dinheiro. Quem decide, nesse caso? Quem controla cada um dos setores que beneficiam desse 'cheque em branco'? Esses setores organizam-se de forma, não por acaso, pouco democrática, afetados por pequenos mas arbitrários e ditatoriais controlos por parte de alguns que se tornam, graças a isso, 'estrelas' e, como 'estrelas', iluminam os rumos do dinheiro. Voltemos a um caso, não somente episódico, mas sintomático: o do mesmo Chomsky. 

Não por acaso, os seus discípulos e discípulas na academia foram passo a passo eliminando todas as correntes linguísticas não-chomskyanas e recorrendo aos piores argumentos: acusando-as de 'atrasadas', 'exóticas', 'erradas' (incluindo moralmente). Um dos divergentes foi um pesquisador que descobriu uma língua exótica, na Amazónia, que não possui um dos 'universais' da linguagem postulados por Chomsky. Foi perseguido academicamente nos EUA e, pela correia de transmissão imperialista que também domina a esquerda brasileira, ele e seus colaboradores foram perseguidos nas universidades brasileiras. Abafados, silenciados, des-contratados. Entretanto, cada vez se torna mais evidente que: 1) os 'universais' da linguagem podem não ser necessários ao funcionamento da linguagem, pelo que não serão caraterísticos de todos os seres humanos; 2) a fundamentação da sua existência não precisa nem do inatismo (isso o próprio Chomsky acabou reconhecendo, refazendo a sua teoria nesse ponto particular e 'exógeno' a ela), nem de nenhuma outra forma (que não a inata) de uma 'gramática universal'. O tendencialmente universal - e sublinho que tendencialmente - não é nenhuma gramática da língua ou da linguagem, são as estruturações percetivas e a articulação entre elas e o funcionamento cerebral, sendo que os dois (estruturações percetivas e cérebro) se formam e crescem juntos, constituindo um só, que por necessidade analítica separamos momentaneamente, como os médicos separam momentaneamente um órgão para curá-lo, sem, no entanto, esquecerem que ele nunca funciona sozinho. 

Ora, perante a verdadeira ditadura universitária chomskyana, ou da gramática generativa, "o poder" e "o Estado" não se devem pronunciar? Nós, que pagamos todos impostos e temos as mais diversas opiniões (incluindo sobre a gramática generativa), perdemos o direito de decidir sobre se o nosso dinheiro serve ou não para eliminar doutrinas e metodologias académicas, reduzindo-as a uma só? E o senhor Chomsky, pelos vistos, não percebe que o pensamento crítico se exerce relativamente à sua teoria quando alguém a põe radicalmente em causa fundado numa investigação própria e pertinente? E que tem, mais que o direito, o dever de exercer o pensamento crítico também sobre as teses chomskyanas?

Por outro lado, os que se apropriaram da expressão 'pensamento crítico' para reduzi-la à sua estratégia político-partidária, foram eles mesmos que impuseram uma visão política e partidária às universidades que dominaram. Fizeram-no porque, na velha linha marxista, para eles o pensamento que não tivesse a pretensão de transformar era inútil, preguiçoso, indolente, burguês, alienante, etc etc. E, se o pensamento e a ciência deviam transformar, em que sentido se daria tal transformação? Num sentido muito particular, definido pelo velho marxismo, o da revolução socialista e da sociedade sem classes. 

Então, foram eles mesmos que propuseram que, por exemplo, se criassem Centros, Grupos, Institutos e Faculdades cujo único fim seria o de analisar as sociedades de forma a conduzi-las à dita 'transformação' no sentido de uma sociedade igualitária, sem classes, e socialista ou comunista. Quando correntes de pensamento divergentes reclamam dessa verdadeira ditadura e apontam falhas graves no financiamento do 'saber' pelos poderes públicos (ou seja: pelo dinheiro comum, que não é distribuído por igual por todas as correntes críticas), os mesmos grupos que defendem que a ciência é e deve ser, obrigatoriamente, política e partidária, vêm repetir o velho chavão de que "o poder" (dos outros) não deve interferir nas universidades (deles). Mas o povo não decide o que quer? 

O poder, exercido através de representantes eleitos em liberdade, tem a obrigação de clarificar os critérios para a distribuição dos dinheiros públicos também no campo do 'saber'. Não por fulanismos e casos episódicos, mas por princípios e critérios, incluindo financeiros, económicos, de gestão, embora levando em conta que gerir o bem público não é o mesmo que gerir uma empresa particular. Princípios e critérios que devem ser aprovados e fiscalizados publicamente. Por exemplo, definir as percentagens que suportam cada ramo científico (quanto para medicina? quanto para física? para ciências humanas?). Não definir para a eternidade, mas a cada legislatura, por exemplo, ou a cada 10 anos, por exemplo também. 

O poder, exercido através de representantes eleitos em liberdade, pode e deve determinar que haja diversidade de opinião sobre qualquer tema que seja dentro das universidades e que não haja nenhum campo de investigação no qual trabalhem todos com a mesma metodologia e segundo as mesmas hipóteses teóricas. 

É cínico e próprio de trapalhões mal-intencionados argumentar que "o poder" não deve interferir 'na ciência', portanto, 'na ciência', quem conseguir o controlo, seja como for, manda como quiser, impunemente, e determina que dinheiros lhe serão dados. A verdade é que o dinheiro não é da ciência - mesmo quando ela o gera. A verdade é que a ciência nunca avançou na monologia, na mesmice, sob controlo ideológico - teve, em alguns casos, avanços particulares, parciais, dentro de um setor de uma teoria e de uma metodologia. Isso é pouco, muito pouco para quem pretende estudar a verdade, ou seja, aquilo que nos guia para a ação, aquilo que da realidade percebemos como interlocutores. 



13.4.23

Verdade e liberdade

 

Onde não há liberdade não há verdade

12.10.22

Comunismo, em 1873 - definição

 "Systema de uma seita socialista, que pretende fazer prevalecer a comunidade dos bens, isto é, a abolição da propriedade individual e a entrega de todo o haver social, nas mãos do Estado, que fará trabalhar, e distribuirá os produtos do trabalho pelos cidadãos."

Grande Dicionário Português ou tesouro da língua portuguesa, feito sobre o manuscrito original. "Inteiramente revisto e consideravelmente aumentado". Escrito por Fr. Domingos Vieira, "dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho". A citação consta do vol. 2 (C-D), de 1873 (Ernesto Chardron ; Bartholomeu H. de Moraes), p. 321.


4.10.22

Um dos piores presidentes da História do Brasil

 Com uma ampla maioria de direita confirmada, mesmo que internamente contraditória e desorganizada, com vários eleitos de direita contra Bolsonaro sendo eleitos tanto quanto os direitistas que ainda o apoiam, depois de gastar rios de dinheiro público para angariar apoios na Câmara e no Senado, mesmo depois de gastar rios de dinheiro público reforçando subsídios sociais provisórios para enganar os pobres, Bolsonaro perdeu o primeiro turno por quase 5% para Lula, num combate entre dois ex-presidiários que se acusam de sê-lo e dois presidentes corruptores ativíssimos. 

Note-se que, no Brasil como nos EUA, é raro um presidente em exercício perder eleições para renovação do mandato. 

Para não perder por mais, Bolsonaro teve de adotar, agora e ao longo do mandato, medidas e manhas que publica e acerbamente criticava para se eleger a primeira vez. As conclusões a tirar, seja qual for o resultado do segundo turno (numa eleição decidida por anticorpos), as conclusões a tirar evidenciam-se: 

1) A vaga de direita no Brasil é de direita mais do que bolsonarista, por isso a direita venceu as eleições no primeiro turno em que o presidente direitista perdeu.  

2) Este presidente cometeu dos piores erros da história da república brasileira, mostrando-se despreparado para o cargo e sobrevivendo por artimanhas retóricas e esmolas. 

Uma maioria parlamentar de direita e um presidente de esquerda limitado por ela se desenham como possível e equilibrada solução para o fragmentarismo político brasileiro. Solução provisória, sem dúvida. 

Quanto ao PSDB, cometendo erros sobre erros, está a pagar caro pela perda de coerência e de estratégia. Tornou-se um mero partido de burguesinhos e patricinhas, muito habilidosos para as intrigas caseiras e que se derretem no calor das ruas. 



16.9.22

Comunidades imaginadas e desculpas imaginárias

Sofismático o recurso constante ao conceito de «comunidade imaginada» para defender que os povos e os Estados nacionais têm de pedir desculpas por isto ou por aquilo. Coloca-nos vários desafios esse recurso: 

1) Todos os membros da comunidade também têm de se vangloriar (em conjunto) pelo que imaginam ser glorioso no passado da sua nação?

2) A comunidade imaginada hoje é o mesmo que a comunidade imaginada ontem, sendo por isso corresponsáveis? 

3) A comunidade imaginada hoje imagina-se com todo esse passado ou imagina-se com todo o seu presente e fragmentos escolhidos do passado? 

4) A comunidade imaginada imagina-se sob alguma forma de animismo que implique os espíritos dos antepassados nas mentes dos vivos? 

5) Finalmente: a comunidade viva é diversa, mesmo contraditória, como também foi no passado. Deve-se, portanto, concluir que, no presente, a comunidade nacional de um dado país se imagina de forma plural e contraditória. Conclui-se, nesse caso, que não há nenhuma comunidade imaginada, no singular, há vários segmentos sociais imaginando uma comunidade nacional que é diferente da que imaginam os outros grupos. 

Supor que, em nome de uma comunidade imaginada, se deve pedir desculpas, ou nos devemos vangloriar (o mesmo princípio justifica as duas atitudes), pelo passado de uma nação é supor que essa comunidade se imagina da forma e com o perfil com que eu e os meus correligionários a imaginamos. Equivale, portanto, a obrigar o todo a reagir de acordo com o que um setor particular pensa desse todo, ou de como ele se imagina, sem que se pergunte ao conjunto o que pensa do assunto e das interpretações dos vários grupos. Ora a comunidade real, tarde ou cedo, se encarrega de nos mostrar que estamos a imaginá-la abusivamente. É desta cegueira que, em parte, resulta o sentimento de muitos povos hoje que, em percentagem significativa, não se revêm numa atitude política tomada em seu nome sem que se lhes perguntasse nada sobre o assunto - não sendo, porém, solidários com nenhum massacre, que vários deles combateram, denunciaram e tentaram evitar, imaginando assim outra comunidade, a que se orgulha de ter combatido o regime que massacrou e colonizou. Com tais combates é que se redime a História, não com sofísticos pedidos de desculpa.

Transpondo a polémica para um país concreto e não previsto nessas discussões, imagine-se como aplicar o conceito aos ruandeses - e não se esqueçam de lhes perguntarem o que pensam, no seu conjunto e nas suas contraditórias imaginações de nação.


(esta anotação foi suscitada pela intervenção crítica de António Guerreiro, no supl. Ípsilon do jornal Público de 16-9-2022, sobre o texto polémico de Pacheco Pereira relativo a uma hipotética obrigação moral e política de pedir desculpas pelo massacre de Wiriamu)

27.8.22

Clichês, eufemismos e falsificações

 "Vejo que hoje há uma visão quase idílica da escravatura" - onde? escrita ou realizada por quem? 

Não conheço nenhum título nem nenhum pensador, ou escritor, atual, que subscreva "uma visão quase idílica da escravatura". Pelo contrário, alguns aprofundam a visão do tráfico de escravos mostrando como ele envolveu todos, desde a captura e venda na origem dos traficados até à compra nos últimos destinos. Hoje não é mais possível pensarmos que de um lado havia os bons e do outro os maus, como nos tempos da Inquisição ou da Revolução. Mesmo agentes da escravidão viraram por vezes escravos e vice-versa. Idílico dizer isso? Pelo contrário, uma distopia total e que nos mostra que não houve paraísos, idílios ou coisas parecidas na história dos homens.

Outros, ainda poucos e medrosos, demonstram como os processos, as legitimações, os recursos e as artimanhas se globalizavam nesse tráfico. Há muito e não só hoje se conhece também que, tanto escravos quanto senhores (os mais diversos), misturaram referências culturais enriquecendo as suas personalidades e estratégias sem que isso dependesse de ser ou não ser escravo ('coisas' de escravos eram apropriadas por patrões e vice-versa; claro que uns apropriavam como casta ou elite e outros como subjugados, mas todos misturavam traços culturais diversos). Dessas misturas resultaram muitas das culturas nacionais e regionais de hoje. Será isso que chamam de "visão quase idílica"? Nada tem de idílico, foram misturas apesar de, apesar da violenta e desumana realidade da escravidão, no entanto universal e multissecular (idílica esta constatação?). Apesar dela, e, muitas vezes, para torná-la mais eficaz, ou resistir dentro dela, dela-realidade-escravocrata, em sociedades desiguais e cruéis, impiedosas. 

Não interessa o autor da afirmação colocada no começo, dessa ou de outras afirmações idênticas, interessa a expansão dos clichês de cafés ou de twitters, tão nauseabundos quanto os outros e visando maior efeito imediato. 


Outro clichê, equivalente, reporta-se sempre à "cultura dominante". A cultura dominante, hoje, é a que se reporta à "cultura dominante" criticando-a, como se vê pelos prémios e subsídios académicos, pelos títulos e subtítulos de textos de divulgação, manuais de ensino, páginas de cultura de periódicos generalistas, discursos de políticos oportunistas. Desde há várias décadas é assim. E faz-se a crítica denunciando 'um tempo em que', sem se pensar nos espaços em que, como se todos os espaços fossem abarcados por um mesmo tempo social e político. A globalização não conseguiu tanta uniformidade...

À falta de uma realidade à qual nos opormos, em nome da hipercorreção político-partidária, para legitimar nossa ambição de 'subir na vida' e 'ditar regras', evocamos um fantasma do passado e, para não se reparar no anacronismo, metemos na frase a palavra "hoje". Belo truque de mágica para uma mensagem instantânea numa rede social de pessoas apressadas e fúteis. Porém, dizem "hoje", a gente olha para os lados à procura do tal idílio, nada se vê, nada se escuta, só pessoas a dizerem que é assim, "hoje", na "cultura dominante", mas os tais idílicos do tal hoje tornaram-se entidades míticas, sem chão, fantasmas para pagarmos aos feiticeiros... 

Hoje a escravatura chama-se migração ilegal, por exemplo, e os migrantes pagam até para morrer no caminho, pensando em melhorar a sua vida. Mas não vejo os que falam da "visão idílica" de "hoje" sobre a escravatura denunciarem isto e sobretudo nestes termos. Se o fazem é para demolirem e denunciarem mais uma vez o "Ocidente", várias formas de capitalismo, etc., ou seja, mais uns fantasmas, ignorando a origem dos problemas e das migrações, que vem na maioria dos casos de governos autoritários, promotores de profundas desigualdades sociais e sem que o tal 'Ocidente' esteja interessado nessas políticas. Como pode interessar, a quem procura extrair recursos rapidamente e barato, esse tipo de governação? Hoje, no hoje de hoje mesmo, sabe-se, traz mais problemas do que vantagens a governação corrupta, ineficaz para o desenvolvimento e autoritária. Traz, por exemplo, tarde ou cedo, instabilidade, a par de morosidade e despesa excessiva com agentes corruptores e corruptos, quando não com 'missões de paz' ou de guerra. Se uma potência pode extrair recursos em estabilidade, legalmente, porque irá promover guerras, missões de paz, ditaduras, em vez de negociar com governos eleitos e que precisam de se reeleger em liberdade? A liberdade, além de muito melhor para todos, é mais rentável que a opressão. Felizmente nisso sou idílico. É muito mais prático fazer-se acordos ao nível dos governos e pagar a governos eficientes, legais, democráticos. Só quando a instabilidade se torna insuportável (financeiramente) é que as grandes potências aproveitam para criar nichos estritos e provisórios de eficácia rápida na extração de matérias-primas. O que, por exemplo, a Rússia faz hoje descaradamente já e fizeram mais países para tirar petróleo do Iraque depois de 2003.

Hoje a escravatura é também a das mulheres retidas sem documentos em casas de grandes senhores, não do 'Ocidente', no qual os tais senhores e senhoras seriam felizmente denunciados, tarde ou cedo, por uma imprensa livre e combativa, como já sucedeu com uma jovem diplomata indiana em Nova York. Não no 'Ocidente' mítico, mas em vários países árabes reais e não só. Mulheres e homens de casta que trazem mulheres e homens pobres a trabalhar 'com a família', 'pobres' que são 'da família', escravos e escravas da família, 'de casa', recebendo pequenas compensações em troca de si próprios - como há milhares de anos os escravos sabem que se passa. 

Hoje a escravatura é a das pessoas a trabalhar sem salários, ou com salários baixíssimos, ou com salários em atraso crónico, situação frequente por exemplo em Angola. 

Que sentido faz, perante isso, escritores que se dizem empenhados em contribuir para o avanço da humanidade, concentrarem-se em desmontar "uma visão quase idílica da escravatura", pretensamente atual mas que, na verdade, não existe hoje em lado nenhum? Para quê 'atirar no morto'? mmmm...... 'passa a mão pela tua boca'...

Deixem-se de conversas para boi dormir a olhar o palácio... A tal humanidade, a humanidade sem clichês, aflita e real, saudará os vossos esforços quando eles forem de hoje e para melhorar o presente. O resto são 'redes sociais virtuais'... para vender livros e só melhoram o bolso dos oportunistas.