19.1.22

Negação do racismo 'negro' - pressupostos falsos, tentações repressoras e as câmaras de gás


As reações inconsistentes a um texto de António Risério demonstram bem, não necessariamente as suas razões, mas o clima político-partidário que as motiva. E mostram, sobretudo, que o racismo 'negro' se baseia numa sucessão de clichês assentes em pressupostos falsos. O que faço aqui é, com breves frases também, desmontar a falsidade e os pressupostos, em vez de rebater lugares-comuns autoritários com outros lugares-comuns candidatos a autoritários, igualmente baseados em suposições falsas (os que levaram Bolsonaro ao poder).

Escolho citações do twitter:

"Não existe racismo reverso. Racismo é sistema de poder - econômico, jurídico, midiático, social, físico - fundado na ideia de que não somos humanos. Nunca houve no Brasil negros com poder oprimindo brancos. Afirmar o contrário, com anedotas, é desonesto na medida em que é cruel."

(Thiago Amparo)

"Branco não é perseguido em lojas, não é espancado pela polícia, não perde vaga de emprego só por ser branco.

Não existe um sistema que beneficie o negro diante do branco."

(Pedro Duarte)


"O racismo é um sistema de divisão por meio da categoria de raça, de poder, estrutural, manifestado historicamente, do qual herdamos um conjunto de práticas sociais, políticas, jurídicas, institucionais, que são responsáveis por discriminar, estereotipar"

(Jonas di Andrade)


"A base do racismo são relações de poder pautadas na raça. Relações que se construíram historicamente com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna. Por isso, negros são os mais pobres, os que mais morrem de violência policial e tem menos acesso a oportunidades"

(Vitória Damasceno)


1. Como facilmente se nota, há uma generalização de um caso específico para a definição de racismo usada nestas citações, que transforma um dos exemplos históricos em base única para a definição geral, ou seja, reduz a definição geral a um dos casos que a ilustram. Esse pressuposto é a base geral para a legitimação do negacionismo do racismo e suprematismo 'negro'.

2. Há um segundo pressuposto, mais escondido: não se discute a falta de fundamento do conceito de raça para criticar o racismo, fala-se apenas desse caso histórico e localizável. Isto porquê? Precisamente porque, reduzida a questão ao caso, deixa-se aberta a porta para o racismo compensador, a discriminação 'positiva' e continua-se a usar um falso conceito (o de raça) para discriminar - agora em sentido contrário e satisfazendo pautas partidárias também. Vamos às citações:

3. "Racismo é sistema de poder - econômico, jurídico, midiático, social, físico." Não, racismo é a discriminação de uma pessoa por outra em razão de diferenças físicas socialmente construídas e preconceituosas. Baseia-se em generalizações abusivas e não constitui, necessariamente, um "sistema de poder". É por isso que vimos racismos de reação, reversos, dentro do próprio colonialismo, não por resistência, mas por uso do mesmo erro conceptual rentabilizado pelo esclavagista.

4. "fundado na ideia de que não somos humanos". Não, fundado na ideia de que os outros (os que não fazem parte do nosso grupo) são menos humanos ou não são sequer humanos. Os outros. É por isso que muitos povos intitulam-se a si próprios como 'homens' e aos outros dão nomes depreciativos, como 'bárbaros' (os que não sabem falar; cuja língua está cheia de 'bar' 'bar' - ou seja, os que se chamavam berberes, palavra que tem a mesma origem de bárbaros). Exemplo de povos que se intitulam 'os homens' e, portanto, não consideram que os outros homens sejam propriamente humanos: ba-ntus, literalmente os-homens. Ki-mbundu são homens, povos; u-mbundu são homens, povos; os outros, por exemplo khói e san, povos pré-bantos, são designados pelos seus vizinhos bantos com termos depreciativos - o que as autoridades coloniais aproveitaram para designar também esses povos.

5. "Afirmar o contrário, com anedotas, é desonesto". Casos não são anedotas e, perante afirmações genéricas, um só caso pode desmentir a afirmação (as senhoras da Bahia, por exemplo, têm mesmo paralelos na costa ocidental africana, incluindo em espaços coloniais portugueses, como é o conhecido caso das bessanganas e em ambos os casos nos levam a repensar o quadro social tenso e complexo no qual se afirmaram como sujeitos ativos apesar de inicialmente discriminadas). Houve casos inversos, sim, e a sua pertinência vem de desmentirem essa colagem entre a definição geral de racismo e um caso concreto, histórico, de racismo contra povos 'negros' escravizados.

6. "é desonesto na medida em que é cruel" - isto mostra o tipo de raciocínio que anima estas disputas e estes movimentos sociais. Atira-se com clichês consagrados pelas nossas tribos para conclamá-las à "resistência" (leia-se: destruição pública de quem pensa de outra forma) e recorre-se aos clichês exclusivamente por esse efeito imediato nas tropas. Nem se repara na total falta de lógica ou rigor. Na verdade, o "cruel" não define a "desonestidade", ninguém é "desonesto na medida em que é cruel". Essas categorias andam baralhadas. Um homem, infelizmente, pode ser honesto e ser cruel. Por exemplo: não mente, não é corrupto, não rouba, mas também tem preconceitos e, por eles, prejudica alguns dos 'outros' - os tais menos humanos que nós - não os apoiando, fechando-lhes portas, mantendo-os escravos. Estranho? Próprio do colonialismo europeu? Não. Alguns e algumas das pessoas que reagem com estes comentários serão honestas, porém profundamente cruéis quando não distinguem o 'branco' do racista.

7. "Branco não é perseguido em lojas, não é espancado pela polícia, não perde vsga [vaga] de emprego só por ser branco.

Não existe um sistema que beneficie o negro diante do branco."

Existe, sim. Por exemplo na África 'negra'. E não só, também em vários países asiáticos no que diz respeito às relações entre asiáticos e europeus.

8. Estes falsos pressupostos se resumem e concentram nesta afirmação: "O racismo é um sistema de divisão por meio da categoria de raça, de poder, estrutural, manifestado historicamente, do qual herdamos um conjunto de práticas sociais, políticas, jurídicas, institucionais, que são responsáveis por discriminar, estereotipar". Um resumo das teses que legitimam o suprematismo 'negro'.

Explico por que não me parece verdade. Essa "divisão por meio da categoria de raça" existiu e existe, infelizmente, nos cinco continentes, protagonizada pelas mais variadas populações que se consideram 'raças', umas oprimidas, outras opressoras. Um caso histórico típico de uma "raça" subjugada (portanto sem poder) que não deixou de manter-se separada, não deixou de racializar e de excluir os outros grupos, foi o dos judeus em cativeiro.

9. Resumo final da confusão de um exemplo histórico de racismo da classe dominante com a definição geral e universal de racismo: "A base do racismo são relações de poder pautadas na raça. Relações que se construíram historicamente com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna. Por isso, negros são os mais pobres, os que mais morrem de violência policial e tem menos acesso a oportunidades". O racismo vem só do conceito de "raça", grupo, etnia e da necessidade arcaica de separar mentalmente e socialmente os grupos para assegurar a reprodução dentro do grupo. O racismo pode ser usado pelo poder ou pelo oprimido, como já mostrei. A base do racismo parece-me, portanto, que são simplesmente relações humanas baseadas no conceito de 'raça'. Não se construiu historicamente só "com exploração de negros, colocando-os em posição subalterna". Isso, aliás, resulta da própria colonização e ocupação do território de outro, independentemente da cor da pele: alguém invade e ocupa a casa do vizinho para se colocar a si próprio em lugar subalterno? Por isso, a invasão ou colonização do território de uma etnia ou chefia vizinha, ainda que tenham todos a mesma cor de pele, resulta em subalternização do vencido, que muitas vezes se traduz em escravização do derrotado e toda a família.

As afirmações que procuro desmontar, taxativas, reiterando apenas o 'já dito' para dizer-nos que é proibido negá-lo, mostram com maior clareza o seu cariz repressivo em outras afirmações, como esta:

"Não adianta ter editoria de diversidade, ombudsman e programa de treinamento voltado a profissionais negros se nas páginas do jornal ainda há espaço para aberrações em forma de texto que defendem a ideia estapafúrdia de racismo reverso.

Mais do que lamentável, é vergonhoso."

Portanto, quem afirma o que - por exemplo - Risério diz, deve ser remetido ao silêncio, ao desprezo, por necessariamente "estapafúrdio", aberrante. Ora, se o que o outro nos contradiz é "estapafúrdio", "aberração", está fora da racionalidade e, portanto, a negação do racismo 'negro' está fora daquilo que define o ser humano: um ser racional. Voltamos, por esta via, às primeiras e primárias manifestações de racismo: os outros não são humanos, ou são menos humanos. O que a mim me repugna não é a relativização da mágoa nem da revolta 'negra' ou 'preta', o que a mim me repugna é a continuação das tentações totalitárias a partir de reivindicações identitárias e da manipulação das vítimas dos racismos. O mal do racismo é o racismo, seja quem seja a vítima e em qualquer exemplo histórico: as câmaras de gás estão na nossa memória para comprovar isso mesmo.

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Surgiram, entretanto, as mais variadas reações, de apoio, de repúdio, de reação do próprio ofendido (Risério, no facebook), na sequência do seu texto, que ativou o botãozinho automático típico dos fanatizados. Tudo somente confirmações, entre as quais a carta de repúdio de jornalistas da Folha de São Paulo. Uma carta que demonstra bem o cinismo com que esse grupo de jornalistas atua.

Não perderei tempo a comentar, já disse o que tinha para dizer. Apenas observo que a tentativa de calar uma interpretação diferente se legitima em nome de "uma Folha mais plural". Aqui se regista a mesma falsidade de raciocínio de que já falei, pois silenciar alguém é o contrário de aumentar a pluralidade de opiniões, não pode portanto legitimar-se em nome dessa pluralidade que está a negar. 

Aqui fica somente o meu testemunho, pois cancelei a subscrição da Folha (processo difícil, em que somos psicologicamente violados, torturados, quase obrigados a reconsiderar, através de uma pressão telefónica digna de Kafka). Faz meses que anulei a assinatura e, precisamente, pela pobreza em que a secção cultural caiu, sobretudo na Ilustríssima. Todos os textos vão no mesmo sentido, os temas são sempre os mesmos e o leque de autores é determinado pela mesma monotonia ideológica. Isso resultou no que resulta sempre: uma pobreza de conteúdos provocando um desinteresse total. A gente só precisa espreitar a imagem, a primeira linha, o título ou subtítulo, nem precisamos de ler o primeiro parágrafo ou as caixas de destaque. Sabemos logo tudo o que vem a seguir e, de vez em quando, para confirmar, eu lia: meras repetições de clichês enfileiravam-se na listagem retórica e sofística das exaltações do único reverso...

Nem direi que faço votos para que tais jornalistas aprendam com a polémica. Ela lhes mostra que o seu domínio sobre a produção cultural brasileira está próximo do fim, avolumando-se o número de vozes - diversas - de pessoas com coragem para enfrentarem a falsificação promovida pelo "viés" partidário, identitário (de esquerda, porque há o identitarismo de direita), monocórdico. Mas eles não vão mudar, pois não saberiam como fazê-lo.


Post-scriptum: aproveitem para passar por esta página do ANTT de Portugal - https://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/abolicao-do-trafico-de-escravos/ 

16.1.22

Benjamin Constant - sobre a abolição do tráfico de escravos:

 

"A escravatura corrompe o senhor e o escravo" (Livro II, p. 18). 

As medidas tomadas para abolir o tráfico, na prática, só pioraram as coisas. (Livro II, p. 4). 

"O tráfico dos negros tornou-se bem mais atroz depois que ele foi entravado por proibições ineficazes" (Livro II, p. 5)

A violência dos escravos (por exemplo em S. Domingos) respondeu à dos senhores, ainda que não fosse correta. (Livro II, p. 17)


(Commentaire sur l'ouvrage de Filangieri. Paris: Dufart, 1832. Encadernado em Lisboa. Comprado em Luanda no século XIX)

12.12.21

Comentários i-liberais - I

 

Apareceu-me um vídeo não sei já onde, acho que de agora, em que um político liberal assumido apresentava um programa de governo (sem qualquer medida concreta, palpável). Escutei com alguma atenção mas logo me fatiguei. Aquilo era demagogia típica de 'troca-tintas'. Geralmente liberal mas frisando que tinham preocupações sociais e ninguém ficaria pelo caminho, ou seja, querendo satisfazer a todos ao mesmo tempo, sendo liberal mas deixando no ar a ideia de que o liberalismo cuida da harmonia social e do apoio aos necessitados, etc., num facilitismo que esconde os contornos definidos de uma proposta política específica. 

Mas porque havia um liberal de mostrar tal preocupação com os desvalidos, em vez de mostrar que a libertação dos indivíduos e a diminuição das despesas estatais, a libertação da criatividade e do empreendedorismo face às barreiras burocráticas e ao engessamento legal, ajudaria a superar a crise atual? Porque um dos problemas dos liberais em democracia é o de gerar uma maioria de pessoas que se revejam nas suas propostas - ao ponto de votarem nelas. Porque muitas pessoas vivem vidas precárias, cada vez mais, e percebem as propostas liberais como uma via aberta pra quem já tem poder exercer em pleno a sua liberdade. 

Não gosto do liberalismo nem do neoliberalismo porque escamoteia a 'questão social'. Havia, nos regimes europeus anteriores ao liberalismo, na maioria deles, uma estruturação social que salvaguardava a proteção dentro da 'classe' (melhor dito: da corporação). Os trabalhadores agrícolas estavam perdidos, eram quase escravos ou mesmo escravos e, portanto, não tinham corporação. Mas os artífices, os que sabiam de uma profissão, de uma arte, em que se tornavam mestres, integravam-se numa corporação dos da mesma arte e protegiam-se uns aos outros, apoiavam-se. 

Por outro lado a Igreja, magramente que fosse, dava apoio a pessoas pobres, sopas aos pobres, ensinava meninos pobres a ler, recolhia os filhos que as mães não podiam sustentar e deixavam na roda nas paredes dos conventos e, por vezes, convenciam algumas velhas senhoras a serem caridosas. O sistema não resolvia nada no que diz respeito à miséria, mas diminuía seus efeitos entre os desfavorecidos e evitava que os profissionais caíssem, com os seus filhos, na 'classe' dos desfavorecidos.  

O mau desse corporativismo era que os filhos dos sapateiros tinham de ser sapateiros também, ou caíam na rua, no imprevisível, na desgraça ... ou conseguiam entrar na Igreja, ou migravam para as colónias. O liberalismo libertou as pessoas disso, cada um se tornou livre e responsável pela sua vida. O filho do sapateiro podia ser advogado, por exemplo, como podia ser outra coisa qualquer incluindo político (por princípio). Foi bom, nessa medida mesmo. Porém mau, porque a força protetora das corporações e da igreja foi diminuindo e muita gente ficou ao 'deus dará'. 

O socialismo trazia uma resposta parcelar ao drama: reorganizava a sociedade, não por corporações, artes e ofícios, mas por classes e sindicatos. Porém, reduzindo a nova arquitetura política e social aos operários e camponeses, não incluindo corporações de pequenos e médios burgueses, artífices, enfim, profissões relativamente livres das instituições e não exercidas por pobres assalariados. E procurando, como no marxismo, a sociedade sem classes - uma utopia conveniente à elite partidária que a geria. 

O fascismo e, de forma geral, o corporativismo, quase resolviam isso abrindo-se a uma organização e a uma representação política estruturadas em função das profissões e das áreas de atuação. Quando misturando-se com o municipalismo (refiro-me aqui especificamente à escolha de representantes municipais para os parlamentos e os conselhos regionais), acentuava-se a representação social e local, afastando-se da política real e quotidiana as grandes conglomerações ideológicas dos partidos, organizados em redes de influência (essas redes era o que havia de mais parecido com uma representação social e local nos aparelhos partidários). 

Quase resolviam, disse, porque, junto com os corporativismos e as representações locais, vinha um partido que dominava tudo, mandava em tudo, controlava tudo e tornava as assembleias corporativas, além de manietadas, pouco mais do que consultivas ou mesmo só consultivas (caso do salazarismo). Tal como o comunismo punha o partido no controlo efetivo de tudo, incluindo das assembleias de operários, moradores de prédios e quarteirões, camponeses, etc., assim fez o fascismo. 

Ou seja: as alternativas eram engolidas por partidos totalitários. Restava, novamente, o liberalismo, capaz de se reformar com o capitalismo, capaz de se transformar a si próprio o suficiente para sobreviver às mudanças e à evolução do próprio capitalismo. 

Do que ficou para trás veio a surgir, entretanto, uma estrutura que pode ser importante e não é propriamente liberal, mas também não é socialista: os Conselhos Económico-Sociais, onde a representação é por organizações económicas e profissionais (embora só as fortes...) e que permitem contornar as manipulações partidárias discutindo entre si e com os governos, diretamente, os interesses conflitantes (ou concordantes, o que é raro mas pode acontecer). 

A partir de um certo ponto, escutei com alguma pressa esse liberal demagogo e não me pareceu que ele pegasse na 'deixa' de tais Conselhos para mostrar como as democracias capitalistas acabaram gerando mecanismos de superação dos males trazidos pelo primeiro  liberalismo. Pode ser que tenha falado, mas não dei por nada.

O reforço desses Conselhos em certos governos revela a tendência para lhes reconhecer eficácia e representatividade nas articulações sociais, evitando (ou resolvendo, ou concertando) conflitos que os partidos políticos manipulam para seus próprios fins e que reabrem quando lhes dá jeito, a partir das assembleias ou parlamentos que dominam, por vezes em exclusividade. 

O perigo dessa estrutura corporativa no seio da democracia (sem feri-la nem substituí-la) é que ela pode, na prática, tornar inúteis as assembleias representativas e subordinar às orientações gerais dos Conselhos Económico-Sociais a própria gestão local. Ou seja, o perigo é, mais uma vez, que o regresso do corporativismo real seja manipulado para instaurar novos governos ditatoriais, encobertos ou não. Necessário se torna, por consequência, reforçar a representação da sociedade real, viva, quotidiana e local nos parlamentos e nas assembleias. 

Acho que esse é o desfaio decisivo das democracias atuais. 


15.11.21

Os privilégios e a sinceridade no questionamento das migrações

 

https://www.nigrizia.it/notizia/passaporti-stop-ai-privilegi - pede-se nesse endereço para assinarmos uma petição para os países ditos democráticos discutirem a igualdade de privilégios no uso de passaportes. Além de ser um endereço racializado ('nigrizia') e não termos qualquer fundamento para racializarmos a vida, há questões pertinentes que, de uma vez por todas, deviam ser colocadas para se realizar um debate sério, de resto envolvendo os países todos do mundo. Enumero algumas: 

1 - "paesi cosiddetti “democratici”" - pergunto-me a qual substantivo país aplicariam os subscritores o adjetivo democrático sem aspas.

2 - Os privilégios referidos (e outros adjacentes) não existem para cidadãos europeus que pretendam pesquisar, trabalhar, ou simplesmente viver na maioria dos países africanos.

3 - Não se coloca a questão principal: a origem do mal-estar nos países de onde se emigra reside na má-governação, no despotismo e nepotismo, na não distribuição de riqueza e na incompetência.

4 - Finalmente, pergunto-me: quantas pessoas com fome eu conseguirei receber na minha casa? Quem me pagará a sua alimentação? Os países responsáveis pela origem das grandes ondas migratórias indemnizam-me por eu sustentar os seus filhos?

São perguntas desagradáveis e, no entanto, se as fizermos e procurarmos respostas sinceramente e todos juntos, é a única via pela qual podemos resolver a crise migratória mundial.


18.10.21

Antirracismo racista? Cristianismo anticientífico? - para que serve a ciência em política?

 

A receita de medicamentos contra a Covid-19 que não tenham eficácia cientificamente comprovada se tornou condenável por dois motivos: porque põe em risco a saúde e por ser um ludíbrio. 

A negação da existência de uma pandemia, e da causa da pandemia, também se tornou politicamente condenável pelos mesmos dois motivos. 

Interessa-me agora o segundo. Porque é procedimento geralmente condenável o de construir, propor e impor procedimentos alicerçados em 'verdades' que a ciência demonstrou não serem verdadeiras. Em política, há verdades negociáveis. A verificação de conceitos e de hipóteses pela ciência constitui um dos limites consensuais (nas democracias) à negociação da verdade política.  

Um conceito correntemente usado que a ciência verificou ser falso torna moralmente condenável o seu uso. A verificação de hipóteses e de conceitos pela ciência realiza-se pela prévia definição rigorosa dos mesmos conceitos e hipóteses, que é necessária para a conceção de momentos de experiência ou de prova.

O conceito de raças humanas foi comprovadamente examinado pela ciência a partir da definição de 'raça' usada em ciência. Verificou-se não ter validade científica, ser uma construção social implicando uma base biológica inexistente. 

O uso do conceito se torna, assim, ludíbrio - seja para bons ou para maus propósitos. É, portanto, muito de estranhar que as mesmas pessoas condenem politicamente o que não é cientificamente comprovado e não condenem posições partidárias ou políticas assentes no uso impróprio da palavra raça.

Se não há raças humanas, não podemos pensar ou resolver o problema social e pessoal chamado racismo como se elas existissem. O racismo combate-se ou supera-se desmontando o conceito de raça e o preconceito racial e não tornando a montá-lo com figurino diferente. Na verdade, ele se integra em procedimentos gerais excludentes e o que está em causa é uma tendência (humana, infelizmente) para a segregação. A mesma que leva certos chefes partidários a dizerem que a política é a definição do inimigo. Essa tendência excludente é sintomática em muitos grupos que se apresentam como antirracistas e vemo-la caraterizar o fanatismo religioso também. 

A racialização no antirracismo anula o seu propósito político-social por ignorar as consequências morais da inexistência de raças humanas. O abandono da racialização pelos movimentos humanistas é a garantia da universalidade dos direitos. 

Agora voltemos aos populismos atuais de 'direita' (se é que têm mesmo algum fundamento político). A democracia cristã, por contraponto a eles, não tem por base diretamente o conceito de Deus, que não é verificável. Os seus princípios orientadores partem (partiram, pensa-se) da doutrina social da Igreja, fixada em Concílio. Essa doutrina articulava princípios religiosos com preocupações sociais evitando choques com a ciência. Os novos populismos 'cristãos' agem como os antirracismos segregadores: em nome de uma verdade não provável e contra os consensos conciliares ou científicos. O populista não se diz inspirado na doutrina da igreja, ele é o representante da própria vontade de deus. O risco humanosocial e político é o mesmo que o dos novos racismos: uma ditadura pior do que as imposições consensualizadas erigida por segregação de elementos discordantes ou distópicos. 


6.9.21

Estilo e verdade


O estilo é o homem, sem dúvida. Não sei se todos entendemos a amplitude e a amplidão do aforismo de Bouffon. Ele escreveu isso num tratado sobre o Estilo (o Discurso sobre o Estilo, de 1753). Aí ele também diz, algumas linhas abaixo: 

porque só a verdade é duradoura e, inclusive, eterna. Ora um belo estilo só é tal, de facto, pelo número infinito das verdades que expõe. Todas as belezas intelectuais que nele se encontram, todas as relações de que ele é composto, são outras tantas verdades igualmente úteis, e talvez mais preciosas para o espírito humano do que aquelas que podem constituir o fundo do tema.

Para compreendermos a amplidão da sua verdade precisamos conhecer a poética envolvente, segundo a qual a tríade Belo, Bom, Verdadeiro é que fazia o estilo do homem sublime. 

Hoje os políticos usam, cada vez mais, uma raspada imitação do aforismo, concentrando em duas ou três frases uma simulação de verdade. Essas frases são como a bebida que se toma de um trago e deixa efeito imediato forte. O efeito esgota-se rápido e precisamos de outro shot (tiro) logo a seguir. Os intriguistas conhecem também tal tipo de frase e a necessidade constante de reposição de shot's. A verdade não é o que interessa, mas a continuidade do efeito imediato enquanto ele for útil. Como dizem num provérbio muito influente que esconde bem a sua fraqueza, em política o que parece é. Desconfio que deixa de ser ao fim de pouco tempo e se esquecem dessa parte. 

Esse estilo não é o homem, ele indicia apenas um mentiroso, porque não traz verdades, alude a possíveis acontecimentos cuja verificação dispensa de bom grado. Esse estilo, comum nos twitter's e afins, não é o homem porque esse homem é uma simulação para alimentar simulações.

O efeito imediato parece o de um homem que personifica um estilo, mesmo que raso, forte. Mas é forte só na sugestão imediata (antes aparecia o mesmo perfil um pouco mais rebuscado nas conversas de café: a gente chegava a casa, pensava com calma e tento, e a verdade dita no café se esfumava com o frio). 

Quando esse político atinge o poder, um homem sem verdades, vacila, derrapa, emenda, grita, aponta o dedo aos outros como se ainda estivesse na oposição, atropela, arrasa, dizima se puder, para mascarar a realidade das inconsistências e das incompetências acumuladas. Porque o homem não tinha, afinal, estilo, apenas uma simulação de estilo. Se puder, esse homem instaura uma ditadura (ou uma democracia musculada) para proibir o que a realidade escancara: a falta de verdade do falso aforismo. E a musculação se mostra típica da falta de estilo. Um homem com estilo era Obama; um homem sem estilo, Trump. O primeiro sobreviveu aos seus erros; o segundo não conseguiu reeleger-se (fenómeno incomum nos EUA).

Esses homens sem estilo são populistas. Sobretudo quando não se rodeiam de pessoas competentes e não as deixam exercer a sua competência. Se a liberdade se mantém, eles desaparecem. Por isso precisam de muscular a política, identificar adversários e combatê-los ferozmente (com a ferocidade de outros homens). 

O estilo faz-se do homem, das verdades do homem. Constitui, portanto, grave indício que um homem não tenha estilo. E isso é fácil de ver. 


4.9.21

Aforismo do lixo

 

Toda a identidade gera seu lixo. Que não resolve. Revolve-se. 

Conforme o poder se afina, mais a identidade se define, porque é identificando que o poder se afina. 

Quanto mais a identidade se define mais aumenta a montanha de lixo. 

Que não se resolve. Revolve-se. E entra em combustão.