6.9.21

Estilo e verdade


O estilo é o homem, sem dúvida. Não sei se todos entendemos a amplitude e a amplidão do aforismo de Bouffon. Ele escreveu isso num tratado sobre o Estilo (o Discurso sobre o Estilo, de 1753). Aí ele também diz, algumas linhas abaixo: 

porque só a verdade é duradoura e, inclusive, eterna. Ora um belo estilo só é tal, de facto, pelo número infinito das verdades que expõe. Todas as belezas intelectuais que nele se encontram, todas as relações de que ele é composto, são outras tantas verdades igualmente úteis, e talvez mais preciosas para o espírito humano do que aquelas que podem constituir o fundo do tema.

Para compreendermos a amplidão da sua verdade precisamos conhecer a poética envolvente, segundo a qual a tríade Belo, Bom, Verdadeiro é que fazia o estilo do homem sublime. 

Hoje os políticos usam, cada vez mais, uma raspada imitação do aforismo, concentrando em duas ou três frases uma simulação de verdade. Essas frases são como a bebida que se toma de um trago e deixa efeito imediato forte. O efeito esgota-se rápido e precisamos de outro shot (tiro) logo a seguir. Os intriguistas conhecem também tal tipo de frase e a necessidade constante de reposição de shot's. A verdade não é o que interessa, mas a continuidade do efeito imediato enquanto ele for útil. Como dizem num provérbio muito influente que esconde bem a sua fraqueza, em política o que parece é. Desconfio que deixa de ser ao fim de pouco tempo e se esquecem dessa parte. 

Esse estilo não é o homem, ele indicia apenas um mentiroso, porque não traz verdades, alude a possíveis acontecimentos cuja verificação dispensa de bom grado. Esse estilo, comum nos twitter's e afins, não é o homem porque esse homem é uma simulação para alimentar simulações.

O efeito imediato parece o de um homem que personifica um estilo, mesmo que raso, forte. Mas é forte só na sugestão imediata (antes aparecia o mesmo perfil um pouco mais rebuscado nas conversas de café: a gente chegava a casa, pensava com calma e tento, e a verdade dita no café se esfumava com o frio). 

Quando esse político atinge o poder, um homem sem verdades, vacila, derrapa, emenda, grita, aponta o dedo aos outros como se ainda estivesse na oposição, atropela, arrasa, dizima se puder, para mascarar a realidade das inconsistências e das incompetências acumuladas. Porque o homem não tinha, afinal, estilo, apenas uma simulação de estilo. Se puder, esse homem instaura uma ditadura (ou uma democracia musculada) para proibir o que a realidade escancara: a falta de verdade do falso aforismo. E a musculação se mostra típica da falta de estilo. Um homem com estilo era Obama; um homem sem estilo, Trump. O primeiro sobreviveu aos seus erros; o segundo não conseguiu reeleger-se (fenómeno incomum nos EUA).

Esses homens sem estilo são populistas. Sobretudo quando não se rodeiam de pessoas competentes e não as deixam exercer a sua competência. Se a liberdade se mantém, eles desaparecem. Por isso precisam de muscular a política, identificar adversários e combatê-los ferozmente (com a ferocidade de outros homens). 

O estilo faz-se do homem, das verdades do homem. Constitui, portanto, grave indício que um homem não tenha estilo. E isso é fácil de ver. 


4.9.21

Aforismo do lixo

 

Toda a identidade gera seu lixo. Que não resolve. Revolve-se. 

Conforme o poder se afina, mais a identidade se define, porque é identificando que o poder se afina. 

Quanto mais a identidade se define mais aumenta a montanha de lixo. 

Que não se resolve. Revolve-se. E entra em combustão. 

30.8.21

Södergran - o despojamento e o super-homem


A tradução brasileira (Cecilia Schuback) das Atenções esparsas de Edith Södergran (1892-1923), cujos poemas se podem ler em rede em português do Brasil também (com tradução de Luciano Dutra), entre muitos outros pontos de interesse nos mostra o confuso quadro mental, ideológico e talvez partidário (por consequência) da passagem do século XIX para o seguinte. 

Quando a semiosfera em que funcionamos está confusa, diversificada, oscilante, há pessoas inseguras com isso que se autodeterminam uma disciplina redutora, castradora, que recorta da realidade e do pensamento um perfil único, irredutível e não-discutível a partir do momento em que se adote. São ditadores, denunciantes, capatazes ideológicos, legiferinos e outras potestades menores. Mas há personalidades que oscilam, experimentam, procuram aprofundar, examinam e tentam desenvolver as potencialidades de cada perspetiva, dando-se bem nessa semiosfera instável de fronteiras híbridas. 

Terá sido o caso de Södergran. Desde logo, nascida em São Petersburgo, finlandesa, escrevendo poemas em língua sueca (svenska), por sua vez uma língua que se grafa (na Suécia pelo menos) por alfabeto latino (quase uma contradição: alfabeto latino). Visto assim de fora é uma sopa quase indiscriminada. Historicamente perspetivado se explica (sobretudo pela história política da região). Na pessoa, porém, lá dentro, é a arca de Noé nas ondas do mar, uma coisa só com muitas dentro e nenhum rumo definido, reduzido, ou seja, sem montanha prevista para encalhar. 

A poesia de Södergran faz uma síntese pessoal de procedimentos, referências e sugestões emotivas (entre alegria e melancolia, clareza e insinuação) oriundas do simbolismo, do expressionismo e do recurso ao verso livre, ao imaginismo antes do tempo (se preferem: avant la lettre), ao modernismo de que foi primeira representante no seu circuito de leitura inicial (o de língua sueca). Um volume de cartas e sete de poemas concentram a sua obra, pessoalíssima. 

Em 1919 publicou as Atenções esparsas, bem ao estilo da época e bem ao seu estilo. São de facto fragmentos textuais, dispersos, embora possamos reuni-los sob duas ou três linhas temáticas dominantes. Aforismos por vezes um pouco dilatados, lembrando vagamente os de António Ferro em Portugal (a Teoria da indiferença, de 1920), há entre os dois livros potencialidades comparativas inexploradas. 

As pp. 60-61 da publicação brasileira mostram bem o quadro mental oscilante a que me refiro (e que António Ferro, pouco depois, decidiria superar e unificar à direita). 

A sua poesia revela uma abrangência dialogante como utopia política. Pelo menos isso me parece visível neste poema: 


If I had a big garden

I would invite all my brothers and sisters there.

Each one would bring a large treasure.

We own nothing, thus we could become one people.

We shall build bars around our garden

letting no sound from the world reach us.

Out of our silent garden

we shall bring the world a new life.


Nas páginas a que me refiro (de Atenções esparsas) há quatro fragmentos. O primeiro da p. 60 diz: 

Os três grandes presentes da vida: pobreza, solidão, sofrimento, só o sábio estima o seu verdadeiro alto valor.

O primeiro da p. 61 diz: 

Um verdadeiro homem não precisa de nome, ele vem, vê e vence.  

A diferença entre os dois fragmentos evidencia-se por si. O primeiro nos remete para os santos, a humildade cristã, a sabedoria da aceitação e a soberania do despojamento. O segundo para Júlio César e Nietzche, para a afirmação heróica do superhomem. 

Os dois fragmentos do fundo da página, ironicamente, engrandecem Napoleão por ousado e aventureiro. Apontam-no também como o ser necessário naquele momento (Hitler e Mussolini agradeceriam, embriagando-se com os mitos militares de uma História que não souberam vencer):

O que agora precisamos, é o ser humano mais ousado, este que uma vez carregou o nome Napoleão. 

A postulação era já sensível às massas, como se vê logo no começo da página seguinte: 

Quem não é um ser de ação diz que as massas fedem, mas Napoleão não tem nenhum faro e as ondas o carregam. 

No extremo oposto (p. 63, ao fundo) outro fragmento retorna para o espírito cristão, para a moral de raiz cristã: 

Quem tem poder sobre corações deve tratá-los como algo sagrado.

Era típico da época, para aqueles que abraçavam a maioria dos modernismos e a art nouveau, 'curtir o momento', ou 'o instante', ou 'o flash', como se disse muitas vezes décadas depois, ao longo dos anos '70. É típico também do aforismo, melhor, das recolhas de aforismos ou da série textual aforismos. Eles são ditos em diversas ocasiões, o que os torna contraditórios se postos um perante o outro, se pronunciados ou lidos ao mesmo tempo dois aforismos que se destinam a duas situações opostas. Mas no começo do século XX era por outro 'espírito', por outra mentalidade e atitude perante a vida que se recorria a estruturas aforísticas, com uma vaga pretensão literária e filosófica ao mesmo tempo. E tudo seria inconsequente se fosse levado nesse 'espírito' (a seu modo, uma utopia do presente instantâneo, que tal como as outras precisava de ver toda a gente envolvida ao mesmo tempo e no mesmo sentido para resultar). O que sucede nesses momentos, ou logo a seguir, é que os mais determinados e condicionados organizaram-se e disciplinaram-se no sentido de abafar os outros, que por confissão não podiam fazê-lo. Por isso António Ferro montou uma imagem do salazarismo e Södergran morreu.  

A oscilação entre a sabedoria pelo despojamento ou pela personalização transfigurada em mitos heroicos é um dos eixos temáticos do livro. Não se vê contradição nenhuma, são representações de momentos íntimos e sociais, pensamentos, meditações e sentimentos e emoções tudo misturado numa prosa breve e levemente poética. Mas elas (essas expressões) não tinham como evitar as correspondências político-partidárias. A primeira correspondência, de raiz cristã (mas não só), devia ser um dos pilares morais das democracias (entretanto consignadas ao mito dos grandes homens - economistas, políticos democratas carismáticos, artistas, pessoas excecionais mas que não tentaram, pelo menos no panegírico, limitar a liberdade dos outros: os reis das democracias, como De Gaulle, Rockfeller, Ford, Reagan, Napoleón Duarte, etc., etc.). A segunda é nitidamente autoritária, ditatorial e o homem providencial, herói supremo da História antecipada, encontra-se tanto nas ditaduras de Direita quanto nas de Esquerda, tanto nas forças armadas quanto na Fac. de Direito da Univ. de Coimbra. 

Estamos ainda hoje - nós, a humanidade - a assistir ao desenvolvimento das duas tendências e não conseguimos encontrar ainda a superação das suas limitações e dos seus abismos. Nem conseguimos ir além de oscilações breves e inconsequentes como ponto de fuga para o nada.



9.4.21

Pensamento político: sistematização sem grelha


Cada vez menos o passado nos assegura a previsão do futuro. 

Como, então, vamos planificar o futuro, organizar o pensamento projetivo, se as constantes abstraídas do passado não servem? 

Só podemos imaginar um futuro próximo, muito próximo, e baseados, não no passado, mas no contraste entre as constantes do passado e as dos dias atuais em vários quadrantes. 

Isto me leva a manter a suspeição política sobre soluções condicionadas a um passado mítico ou modelar e a previsões de longo prazo, ou mesmo de médio e curto prazo como os planos quinquenais (e daí para mais longe nem pensar). 

Isto me leva a manter a suspeição política sobre os nativismos e os identitarismos, tanto quanto sobre os socialismos e racionalismos. 

Há, no entanto, uma constante na maioria das tradições que nos pode ser útil. Elas funcionam a partir de princípios gerais pré-estabelecidos (em princípio deduzidos de um texto sagrado ou - mais provável - a partir da memória de muita experiência acumulada). Não determinam regras muito pormenorizadas, porque isso as desmentiria em pouco tempo. Os princípios muito gerais adaptam-se aos eventos atuais e, se necessário, são modificados em contraste com os eventos. 

A aplicação deste 'método', sem dúvida empírico, pode parecer próxima do reformismo ou do conservadorismo. Ela é, porém, próxima de todo o pensamento político não-ideológico, sem sistematização prévia nem projeção rígida, rigorosa, estritamente lógica. 

Por tanto, ela será sempre anterior e posterior aos vários -ismos que dela possam decorrer: liberalismo, anarquismo, conservadorismo, reformismo, pessimismo, etc..



10.11.20

Uma nova lucidez

 

Trump perdeu - desse estamos livres. 

No entanto é mais um país dividido ao meio, como quando ele foi eleito, com a diferença que, uma das metades (a que ele chefiou) se puder anula a outra e tenta fechar a sociedade. O perigo é tanto mais real quanto mais um país está dividido. A popularidade que um político tão desastrado e ditatorial ainda alcançou mostra, por outro lado, que a alternativa a ele ainda não traz aquilo de que a sociedade precisa, ainda não unifica uma clara maioria (provisória, como sempre) em torno de um programa de mudança mais feliz, que aprofunde a liberdade e apure a representação. 

Precisamos de uma nova lucidez. 

13.6.20

Estupidez combativa e racismo


Algum tempo já passou desde que Netanyahu descobriu um golpe de Estado ao ser acusado de corrupção, colocando-se assim na longa lista de populistas e ditadores que não se dão bem com a democracia quando ela permite que os denunciem. Ou seja: quando é livre.

Desde então várias figuras ridículas, desta sociedade confusa de nações e países, reincidiram no mesmo tipo de retórica. Naturalmente incluo a mais recente caricatura, a do presidente brasileiro que, no auge da irresponsabilidade e sem soluções para o seu país, resolve negar a existência de uma pandemia que mata o povo brasileiro indiscriminadamente e a um ritmo cada vez mais acelerado.

Bolsonaro e Trump têm muito em comum, até porque o segundo, muitas vezes, imita o primeiro. Faz lembrar aquela passagem de um programa do Chico Anísio em que uma personagem dizia que gostava muito de ir aos Estados Unidos porque era tudo igual ao Brasil, havia as mesmas marcas, as mesmas fábricas e produtos, lá também havia Ford, lá também havia General Motors, tudo igual ao Brasil. Esse tipo de imbecilidade existe e Trump terá resolvido imitar Bolsonaro em vez de Macron porque Bolsonaro resistiu à invasão francesa da Amazónia.

Trump e Bolsonaro têm em comum o facto de criarem contra eles, em pouco tempo, uma frente significativa de vítimas, de inimigos, opositores, desfavorecidos: ou seja, uma maioria de rejeição - o mesmo tipo de maioria que levou à eleição do próprio Bolsonaro. O resultado está à vista nas grandes manifestações dos EUA, para as quais a morte de Floyd foi apenas um alibi. Em grau menor, dadas as circunstâncias locais, é de se reparar em como, com tão pouco e em plena pandemia, foi fácil juntar manifestantes em muito maior número contra Bolsonaro do que a seu favor.

A razão de ser está, na minha opinião, nessa estratégia política suicida, estúpida, que todos os dias arranja novos inimigos para disfarçar uma total incompetência e uma total insensibilidade política e humana.


Em Portugal, onde os políticos dominantes não seguem tal estratégia, resolveram vandalizar uma estátua do Padre António Vieira. Igual estupidez e falta de estratégia. Em comentários, no facebook, jovens racistas angolanos negros chegaram a dizer que isso era tão justo quanto o derrube das estátuas de Hitler, Salazar e Saddam Hussein. Portanto, concluímos: o Padre António Vieira teve, no seu tempo, um comportamento tão grave quanto o desses ditadores e genocidas (sim, Salazar também, promovendo uma guerra colonial inútil - a última - onde morreu gente só para ele continuar a negar o processo histórico e a realidade internacional que o determinava). Ficamos a saber. Interessante: esses mesmos comentadores do facebook criticam o racismo na Europa e EUA e defendem, nos seus países, a discriminação de brancos e mestiços, equiparados ao veneno da cobra como no Ruanda fizeram com os tutsis por eles serem mais claros. São, na verdade, não só ignorantes e mal intencionados, mas populistas e ditadores e genocidas em potência, quero dizer, que ainda não tiveram possibilidade de realizar-se.

O vandalismo sobre tal estátua, porém, não revela só ignorância e oportunismo. Atingiu a maioria dos portugueses na sua memória histórica mais íntima, mais querida, enfim, num dos nervos da sua identidade enquanto portugueses - identidade a que têm direito, sendo embora polémica, porque todas o são, uma vez que há apenas acordos momentâneos e constantemente negociados, não perfis fixos identitários.

A figura atingida era a de um homem mestiço (de 'branco', 'índio' e 'negro') que, sendo embora do seu tempo e se ajustando a ele (daí a defesa da escravatura do 'negro' para manter o Brasil, o que se pensava indispensável e não era), tentou impedir (como, em geral, os jesuítas) a escravatura dos índios e denunciou frontalmente a corrupção. De resto, será de perguntar: quantos e quem denunciaram a escravatura nos séculos XVI e XVII? Não me refiro à denúncia dos 'excessos', como a que foi feita com muito zelo e razão pelo rei do Kongo, D. Pedro I depois do batismo, e também esse outro rei malogrado (só reinou três anos), D. Pedro II Afonso. Refiro-me à denúncia do sistema escravocrata, à rejeição da existência e da comercialização de escravos. Houve um português, por acaso, que no século XVI denunciou a escravatura no ponto nevrálgico e fulcral e o seu (meio) irmão foi Mem de Sá, que os brasileiros conhecem. Refiro-me ao poeta Francisco de Sá de Miranda, que fez a denúncia em dois versos arrasadores:

Almas vindas do céu
Vendidas em lanços na praça.

Negros? Não: almas, seres humanos, pessoas.

Claro que há portugueses racistas, afirmar isso é uma banalidade (a repetir sempre que alguém a esqueça), há racistas em todos os países e de todos os tipos e há muito racismo em muitos países africanos e na Índia, e na China e na Rússia e na Polónia e no entanto só o vemos na velha Europa ou nos EUA - onde também existe, repito. Essa duplicidade já revela que a denúncia do racismo não se prende, muitas vezes, com uma proposta de superação do que denuncia e, menos ainda, do racialismo.

Mas a memória comum do Padre Vieira em Portugal não é racista nem racializada, como a do Marquês do Pombal e de vários outros (incluindo António Costa, o primeiro-ministro atual). Não por branqueamento, isso também seria criminoso (aliás é comum referir-se que o Padre Vieira era mestiço), mas simplesmente porque se pensa no que fizeram e não na cor da pele. Os portugueses que estudaram Sermões do Padre Vieira na escola ainda os têm na memória, ainda hoje são marcados por eles e guardam uma grata lembrança do autor por causa dos seus sermões, do seu estilo vivo e da coragem na denúncia da imoralidade vigente. Ora foi essa memória, querida e não racial, que a vandalização da estátua provocou, afrontou, sem qualquer sensibilidade ao outro. Total incoerência, visto que tal ato pretendia legitimar-se pela reclamação da sensibilidade ao outro.

A solução, natural numa sociedade democrática (onde há separação de poderes e o judicial exerce a sua jurisdição), vai ser processada, como também (penso) nos EUA se está a processar a investigação e se processará o julgamento dos policiais envolvidos na morte de Floyd.

A postura consequente é a dos que ficam atentos a esses procedimentos para não deixar que eles sejam parciais ou deturpados. Aí é que se corta o mal pela raiz, nessa atenção constante à imparcialidade como padrão de justiça para todos. Criar um vendaval de manifestações, aliás com intuitos discutíveis e não assumidos, é levar-nos a esquecer o problema: um julgamento justo e imparcial dos policiais envolvidos na morte de Floyd.

Quanto à escravatura, a postura militante correta é a que olha para as rotas da escravatura de hoje e as denuncia ao mundo. Se o propósito é, com toda a razão, dar cabo da escravatura, temos que persegui-la onde ela ainda existe em vez de nos distrairmos com fantasmas - aliás rentáveis.

A inflamação leviana e superficial com que muitos, hoje, com paternalismo e oportunismo, pretendem ser 'negros' e não ser racistas (a racialização do discurso, no entanto, é já racismo), vai trazer, em Portugal como no resto do mundo, votos à extrema-direita e às simulações de extrema-direita como são as de Bolsonaro, Trump e André Ventura, seguindo os modelos primários e boçais dos anteriores. As pessoas não tendem, na sua maioria, a votar em populistas, isso acontece porque sentem que as agrediram, ou ludibriaram, e os criminosos não foram chamados à responsabilidade. O populista, porém, comete o mesmo erro dos que protestam dizendo que as vidas negras importam. Eles dizem que os brancos, ou os portugueses, ou os europeus estão a ser insultados e agredidos por negros e por ciganos. Ora, os agressores terão de ser tratados como agressores, em função do seu crime; e os agredidos devem ser tratados como agredidos ou injustiçados, em razão das agressões. Se eu defendo que uma vida 'negra' importa e não uma vida humana, vou deixar passar a morte de uma vida 'branca' porque (por exemplo) foi um 'branco' que matou o outro. O mesmo sucede, com os racistas brancos, quando um 'negro' mata outro: encolhem os ombros, isso é com eles, que se matem. O que me preocupa são as vidas das pessoas e o que está em causa são as pessoas e suas vidas e seus direitos inalienáveis de pessoas, seres humanos. A única maneira eficaz de combater o racismo é exigir que os direitos humanos sejam respeitados em qualquer situação e sempre que um ser humano é ofendido na sua existência. O resto, por mais que se note, não deixa de ser o resto.

Não faz, portanto, sentido, é mesmo continuar perigosamente o jogo do racismo, argumentar como resume bem o escritor angolano João Melo, seguidor do cânone que define: "todo o mundo sabe que, biologicamente, “raça” não existe. Mas trata-se de um conceito (ou, pelo menos, um argumento) social cuja operacionalidade, usada negativamente há séculos, é inegável. Não basta dizer que raça não existe, para que o racismo desapareça. Os factos estão aí." Também não basta dizer que raça é um conceito social para que o racismo desapareça, pelo contrário, continua a dar azo ao fundamentalismo negro, aos neonativismos xenófobos, aos fundamentalismos brancos dos europeus, a toda uma lista execrável de potenciadores de ódios raciais. O mal está, mesmo, no uso de um conceito equívoco. Há diferenças, sim, mas elas não são nem de 'raça' nem de 'espécie', são diferenças de modulações culturais dinâmicas. A regulação dessas modulações, em regimes de liberdade, resume-se à exigência de iguais direitos para todos os homens e à pressuposição de que todos os homens são livres (excetuados alguns direitos retirados a presos por delitos comuns, não políticos nem partidários). São, não 'devem ser', são, só temos que respeitar a sua realidade, ou seja, a sua liberdade.

O comportamento irresponsável e ignorante que levou à vandalização da estátua do Padre Vieira é do mesmo tipo dos líderes atuais de extrema-direita (e de Hitler): eliminar os vestígios do 'outro', ainda e sobretudo quando esse outro se parece connosco - nada de confusões. Foi o mesmo que fizeram as elites 'brancas' norte-americanas ao chamarem 'negros' a negros e mestiços: transformarem tudo em outro e negarem direitos ao outro. Os portugueses em geral e os 'brancos portugueses' têm direito à sua memória, onde incluem pessoas com genealogia 'negra' ou 'índia'. Mas isso é negado quando se vandaliza uma estátua feita com dinheiro público, de contribuições (impostos) pagas pelas pessoas que votam. E aí está o ponto: votam. Faça-se, em vez de vandalizar, um grupo (partido, por exemplo) que se candidata propondo retirar todas as estátuas de pessoas que possam ter tido alguma relação com a escravatura (incluindo Voltaire, os Faraós do Egito e a rainha Jinga de Angola). Espalhe-se esse partido por todo o mundo e, depois, caso tenham sucesso, tentem levar a ONU a determinar a extinção dessas estátuas em todo o mundo. Ou seja: atuem dentro das regras democráticas, criando grupos de opinião e candidatando-se em eleições livres.

Ao fazer o que fez, quem vandalizou não terá sequer entendido que estava a diminuir a sua base de apoio e a empurrar muitos portugueses, abertos e acessíveis à partida, para um voto xenófobo, quanto mais terem compreendido que estavam a fazer um julgamento anacrónico. Muitos portugueses irão fazer o que outras maiorias fizeram já. Ofendidos na sua memória histórica, nos interesses gerais e comuns, ou na sua identidade (que não concebem como 'negra'), cairão na tentação de responder ao racismo com o racismo e à agressão com a agressão e, portanto, vão votar em quem diga aos vandalizadores da estátua: não estás contente com este país vai para outro. Ninguém te pediu para vires. De resto, é o que têm dito muitos dirigentes e destacados vultos de países africanos aos que se queixam das políticas por eles seguidas, algumas delas claramente xenófobas, autoritárias, racistas, tribalistas e (mais raramente, é certo) genocidas. O mesmo, exatamente o mesmo, que disseram Le Pen e seus seguidores...


22.11.19

Israël : Benyamin Nétanyahou dénonce « un coup d’Etat » après son inculpation


À direita, ao centro, à esquerda - são todos iguais, em todos os continentes. Assim que os apanham em falso, assim que lhes descobrem práticas ilegais, os governantes denunciam um golpe de Estado ou coisa muito parecida, impugnam a Justiça se os investiga, ameaçam com a força se tiverem poder suficiente, apontam o dedo a todos os outros para ver se as pessoas deixam de olhar para a sujeira em que se meteram. 

Rejeitá-los é uma questão política e moral, mas acima de tudo estética: são grotescos e querem parecer finos, enfeiam-se, são todos maus atores e dramatizam excessivamente o seu papel, o que fazem na realidade é muito mais feio, grotesco, mal representado - e não revelam qualquer imaginação. Dá até saudades dos 'bons malandros'...


Israël : Benyamin Nétanyahou dénonce « un coup d’Etat » après son inculpation: En refusant de démissionner, le premier ministre israélien a allumé un brasier en guise de contre-feu : il entend faire publiquement le procès de ses juges et des enquêteurs.