5.5.17

Eleições francesas

Marine Le Pen, como Donald Trump, não é nem nacionalista, nem patriótica, muito menos de 'extrema-direita' ou, ainda menos, de uma linha católica da 'extrema-direita'. O seu perfil e o seu comportamento não demonstram isso: aceita os dinheiros de Putin, imita Donald Trump e o pretende imitar o 'brexit' usando igualmente a formação da palavra inglesa, não respeita a personalidade e a propriedade intelectuais, entra em esquemas típicos da partidocracia para financiar-se. Para além disso, é uma líder de arruaça, sem qualquer preparação para governar, sem experiência política, administrativa ou de gestão, sem conhecimento suficiente dos principais problemas e dossiers - mesmo os que sempre aborda, como o da emigração. Como diz o Libération, feroz por fora e fraca por dentro.

Marine Le Pen é o tipo de candidato que Putin prefere e, como se vê pelos EUA, ele acertou: enquanto Trump aprende, com trapalhada atrás de trapalhada, o que implica ser presidente, a Rússia e a China somam pontos interna e externamente, sobretudo no exterior, onde mais falta lhes faz e jeito lhes dá, porque o interior está controlado.

Putin e Erdogan são ditadores que se preocupam, pelo menos, em consolidar uma imagem de competência (competência total no controlo da sociedade, competência política suficiente, prudência económica ainda que sacrificada à criação e manutenção de espaços vitais), assentam a sua legitimação sobre discursos firmes, irredutíveis e seguros sem se radicalizarem (sobretudo Putin, o mestre dos novos ditadores, evitando competentemente os exageros discursivos infantis de Erdogan quando comicia entre os seus). Associam ao perfil público de competência e de segurança, o respeito pela propriedade, que é fundamental para afastar temores comuns e justificados da mais persistente das características do homem social: a ambição. Isso os põe, também, de acordo com tradições que, no fundo, não respeitam (mostrá-lo-ão se elas puserem em causa o seu poder), mas para as quais a propriedade é uma extensão natural e social da personalidade.

Le Pen e Trump são candidatos fracos quanto às suas competências, com aproveitamentos abusivos da sua posição política e da política de subsídios (caso de Le Pen), ou envolvimentos em falências fraudulentas e fugas aos impostos (caso de Trump), ambos imorais apesar de se firmarem sobre um mercado eleitoral que privilegia, aparentemente, a moralidade, ambos fáceis de manipular sob ameaças de revelações fatais. O que lhes importa é chegar ao poder de qualquer maneira e manterem-se no poder custe o que custar, pelo resto não nutrem o menor respeito (veja-se o caso do plágio de Le Pen: se ser de direita e católica é defender a pessoa sobre a sociedade, o pessoal sobre o coletivo e o individual, como pode, não só plagiar, apropriar-se indevidamente do discurso de outro, mas admitir a si própria não serem suas palavras as que dirige ao seu eleitorado?).

A que se deve a ascensão destes simulacros de políticos nacionalistas? A presente situação francesa deriva de anos de irresponsabilidade e de insensibilidade políticas, cujo máximo foi atingido pelo ainda presidente, que só tinha 10% das intenções de voto caso se candidatasse. Há muitos anos, depois do último grande sucesso do Front national e do seu chefe Jean-Marie, a partidocracia francesa redistribuiu o mapa eleitoral de forma a partir em dois (ou mais) cada círculo que tivesse votado maioritariamente em Le Pen e no FN. Isso criou-lhes uma sensação de segurança, confiança, calma e os primeiros resultados depois da nova divisão administrativa confirmaram-na. O que foi feito desde então para resolver os problemas, sobretudo os problemas dos mais desfavorecidos, que os fizeram votar FN e Le Pen? O problema da emigração, o da segurança e o do emprego - o trio que mais votos traz a Marine e ao FN - não só não se resolveram como também aumentaram e os políticos habituais, embora inscrevessem o tema nos seus discursos, em muito pouco revelaram maior sensibilidade ao problema e às queixas da população, seus temores e dissabores relacionados com uma imigração excessiva, descontrolada ou de controlos subvertidos, o desemprego com o qual ela é relacionada e questões adjacentes mas importantes, como a da segurança social e a da saúde pública (o aumento dos seus cargos é visto como resultante da facilidade com que os imigrantes acedem aos seus benefícios e à própria nacionalidade), o aumento da idade para a reforma (que seria também consequência do aumento de reformados por causa da imigração), a própria identidade francesa (pois, ao conceder tão facilmente a nacionalidade se daria a pessoas mal integradas o direito de participarem da definição de uma identidade na qual não se integraram). Tão pouco a segurança foi afinada ao ponto a que tem de ser, e melhorada, antes dos grandes atentados de que a França foi vítima (perpetrados, em quase todos os casos, por cidadão franceses e europeus - pelo que a política de expulsão de Le Pen, como a de Trump nos EUA, não evitaria qualquer perigo).

É desta contínua insensibilidade de políticos abastados e contentes com o seu bem-estar, em muito baseado no aproveitamento máximo de recursos (nem sempre legítimos) que o Estado lhes faculta, é contra tal insensibilidade aos seus problemas diários, crónicos e mais agudos que se farta uma grossa fatia da população, dirigindo os seus votos para o FN, como nos EUA com Trump. E não será mera coincidência que a maioria das ações de campanha do demagogo Mélenchon não tenham dado a devida atenção aos subúrbios, aos bairros pobres e aos operários. Como a campanha de Bernie Sanders nos EUA, a de Mélenchon não tem o seu principal sustentáculo no setor social onde pretensamente assenta a sua legitimação retórica e ideológica: 'pobres' em geral, desprotegidos, desempregados, operariado. São bem mais importantes pessoas de alguma forma integradas na média burguesia (e alguns filhos de outra já não tão média), muitos órfãos do radicalismo esquerdista dos anos 60-70 e do Maio de 1968 com seus filhinhos bem nutridos e uma infinidade de pequenos grupos afins. O operariado, os desempregados e um estrito setor radical da elite francesa  (de Bardot a Tapie), incluindo muitas aquisições recentes, essa amálgama paradoxal é que faz, até hoje, a base principal do apoio do FN. Por um motivo simples e que se prende com a estratégia retórica seguida: privilegiar no discurso político os temas que os políticos 'corretos' evitam tratar com frontalidade e, simultaneamente, jogar com soluções simples, eficazes na aparência, mesmo que não resistam a mais do que uma breve e distraída conversa de café.

Sendo este o cenário, facilmente um bom aluno como Macron mostraria a sua superioridade perante uma guerrilheira de RGA's e shows de café como Marine Le Pen. Por imprudência, inexperiência partidária, no princípio da segunda volta fiava-se demais na vitória, mas retornou à realidade e respondeu razoavelmente. Marine ficou 'desmontada', 'desconstruída' e não tinha capacidade para reagir à marcação cerrada do seu adversário.

O problema maior agora, para o futuro da França, não é se Macron ganha e a elite anafada, bem comportadinha, continua a alienar-se com o seu bem-estar artifical e separado do resto da sociedade. Parece bastante provável que Macron vença, apesar das irresponsabilidade de Mélenchon e de alguns setores de Os Republicanos que sofrem de amnésia histórica.

O problema que se põe, como levanta e muito bem o artigo abaixo (seguir hiperligação), o problema sério e difícil é o da governação posterior a tal vitória. O controlo da governação ficará nas mãos dos mesmos partidos que falharam todos estes anos e não conseguiram renovar-se com sucesso. Macron terá, por limitação constitucional, de submeter-se às velhas estratégias partidárias e de satisfazer o seu bem-estar de sanguessuga, não incomodar e muito menos exterminando a sua insensibilidade característica. Os problemas continuarão a avolumar-se. E, mais uma vez, é bastante provável que única força que saiba encarnar retoricamente as queixas da população desfavorecida pelo sistema continue a ser o Front national. Se este, por sua vez, souber organizar a sucessão de Marine...

The Trouble for France's Next President | Foreign Affairs:

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