É, sem dúvida, assunto que tem apaixonado a lusofonia o da
destituição de Dilma Rousseff. Ela, no entanto, está envolvida por um processo
mais profundo e muito mais interessante.
Passo a explicar-me:
Pelo menos desde que se instituiu a doutrina dos três
poderes eles lutam uns com os outros, entram sempre que podem nos domínios uns
dos outros e, se conseguem, condicionam a atuação dos outros.
No caso concreto do Brasil, a Justiça não
tinha autonomia, estando subordinada ao respetivo Ministério. Isso dava jeito,
por exemplo, aos militares. Quando, creio que no fim dos anos 80, o órgão
superior da Justiça brasileira se autonomizou perante o Ministério, o poder
judicial autonomizou-se perante o executivo.
Desde essa época, lentamente,
gradualmente, uma parte da justiça brasileira foi ganhando consciência de que devia
e podia realizar um trabalho digno, em vez de subsumir-se como instrumento para
encobrir, ou mesmo praticar, a corrupção partidária e outras. Por isso é que
todo este processo, antes de ser político, é jurídico.
Recordemos alguns factos de que ninguém fala já:
Um respeitado Procurador, com uma longa carreira política de
esquerda e mesmo dentro do PT, Hélio Bicudo, lançou a denúncia contra a
Presidente. Ele nasceu em 1922 e ainda fez parte, por algum tempo, do governo
de João Goulart antes da ditadura militar. Ao longo da ditadura foi dos mais
sérios defensores dos DH, tendo por isso visto o nome inscrito na lista do SNI.
Foi vice-prefeito de Marta Suplicy (PT) em São Paulo, imediatamente antes de
Gilberto Kassab ganhar a prefeitura. Foi candidato ao Senado pelo PT, ficando
logo atrás de Mário Covas e FHC (1986). Foi Presidente da Comissão
Interamericana dos DH (eleito em 2000).
Ele filiou-se no PT no momento da fundação do Partido e
desfiliou-se em 2005 por causa do escândalo do ‘Mensalão’. Foi, portanto, um
dos desiludidos de peso com a prática dos governos de Lula e Dilma, com a sua
entrega despudorada à corrupção, a sua manipulação da vida política brasileira
em função da corrupção também. Depois disso ainda acreditou em Marina Silva em
2010 e acabou apoiando José Serra na final do campeonato.
Quando apresentou a denúncia, Miguel Reale Jr. juntou-se-lhe
imediatamente. Trata-se de um jurista com vasto CV e Prof. Titular de Direito
Penal, Medicina Forense e Criminologia na USP. Ele pertence ao PSDB. Um terceiro jurista, ou uma terceira jurista, Janaína
Paschoal, aderiu também desde o começo. Ela doutorou-se em Direito Penal, sob
orientação de Miguel Reale Jr. Ela é o ponto fraco desta equipa, não por falta
de lucidez ou de inteligência, mas por se revelar muitas vezes exaltada,
oferecendo uma imagem imprópria para consumo (quem julga não pode exaltar-se, sobretudo quando julga).
Construída a denúncia, vários grupos ligados aos
manifestantes contra Dilma e a favor da sua destituição, bem como vários outros
grupos da sociedade civil, aderiram massivamente ao processo, como se viu nas ruas.
Quer dizer que este processo resulta:
- - em primeiro lugar, de uma atuação de juristas
com biografia política diversa (ainda que, em ambos os casos, em partidos que
foram liderados por vítimas da ditadura militar);
- - em segundo lugar, de uma desilusão generalizada
com a política do PT manipulando a seu favor a corrupção e multiplicando-a.
Quais as acusações feitas à Presidente? Estas:
- Atos
contra a probidade na administração;
- Atos
contra a lei orçamentária;
- Atos
contra o cumprimento das leis e das decisões judiciais;
- Crime
contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos.
O que serviu de base? As chamadas ‘pedaladas fiscais’, por
questões legais as do ano de 2015 (relativas ao novo mandato da Presidente). Qual
o seu enquadramento?
A origem do uso desproporcionado e doloso das ‘pedaladas
fiscais’ está na utilização dos dinheiros públicos para manter uma aparência de
desenvolvimento, sustentar artificialmente uma série de empresas,
universidades, enfim, de lucros e uma ‘nova classe média’ que, por ter sido
criada e sustentada artificialmente, com o avolumar da crise internacional estava a ser de novo proletarizada.
Portanto, ainda não se julga a corrupção ativa mantida com
fundos da Petrobrás e outros, mas o uso indevido dos fundos públicos para
manter uma aparência de desenvolvimento, o que os foi literalmente derretendo e
colocando o país numa situação economicamente catastrófica e politicamente
insustentável a médio prazo.
A gravidade moral da atuação de Dilma, no julgamento
popular, avoluma-se pelo facto de ela ter abusado desses recursos para poder
fazer a última campanha presidencial sem ter de assumir os erros do PT, ou do
governo liderado pelo PT. Avoluma-se ainda pela sucessão de escândalos de
corrupção envolvendo, entre outras, altas e respeitadas figuras do PT, como o
próprio ex-presidente Lula da Silva. Todo o Partido dos Trabalhadores e a
cúpula governativa se viram denunciados e revelou-se ao Brasil um descaminho em
várias direções que rapidamente conduziria o país à bancarrota, ao descrédito e,
portanto, à miséria generalizada.
A reação do PT e da Presidente foi a pior possível, mas
típica da autoproclamada ‘esquerda do século XXI’. Num procedimento
característico do tempo dos coronéis, partidarizaram uma questão judicial e começaram a
falar em golpe para, no fundo, impedirem que o processo continuasse o seu
caminho constitucional, ou seja, legal. A ideia é levar a um golpe, sim, mas
que obstrua o caminho da justiça e o caminho da democracia e condicione, de
novo, aos políticos e à pressão partidária a atuação dos juristas. Ainda no
mesmo sentido se inscrevem as última declarações de Dilma contra os ministros
do STF que, muito justamente e fundadamente, mostraram que não havia nenhum
golpe.
A contra-campanha do PT, rentabilizando a sua poderosa máquina de propaganda, confundiu muita gente boa. Mas o que, nesta guerra entre Justiça e Executivo, está a
acontecer no Brasil é o que muitos de nós gostaríamos que sucedesse nos nossos
países: a população protestando contra a má gestão (mais ou menos dolosa, agora
importa que seja danosa) e a Justiça atuando em conformidade.
Os políticos
precisam, sim, de ser julgados pela sua “probidade na administração”, pelo seu
desrespeito pela “lei orçamentária”, por tentarem na prática impedir o cumprimento
“das leis e das decisões judiciais” (ou seja: da atuação do Legislativo e do
Judicial) e por “crime contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos”.
Quantos povos, intelectuais, mesmo políticos não gostariam
de ver isso nos seus países, ou seja: a responsabilização dos governantes pela
sua atuação?
É preciso deixar a Justiça fazer o seu caminho, agora dentro
do campo do Legislativo, que tem de ser chamado a pronunciar-se, de acordo com a
Constituição. Essa mesma Justiça, continuando como está a proceder agora, se
encarregará de outros políticos corruptos, que não hesitou em acusar e com os
quais não pactuou (ao menos por enquanto) por mais que lhe desse jeito (caso de Eduardo Cunha, que continua acusado e, por isso, se verá impedido de exercer a Presidência, consequentemente a Vice-presidência).
Dê-se à Justiça a possibilidade
de agir e, se ela também se corromper, então resta-nos apenas o que tanto
procurámos evitar ao longo destes anos: a lei do mais forte, resumida na famosa
trilogia “quero, posso e mando” - e no respetivo corolário: “se te pões no caminho
esmago-te, demónio, não te queixes depois”.