África
no mundo – livre das imposturas identitárias é a edição portuguesa de um
livro a sair proximamente no Brasil também, já ampliado e, em alguns pontos,
pensado para a realidade quase continental desse país irmão (porque não havia
de ser um país irmão?).
O seu autor, Jonuel Gonçalves, é um veterano da pesquisa em economia internacional, com particular incidência em África, e atuação no jornalismo (nota-se no seu estilo) e na ação combativa no sentido, primeiro, da
independência de Angola, depois, da democratização do país. A sua pesquisa para o doutorado (UFRRJ, 2003), sobre a água de ponto de vista econômico, comparava trechos do Cunene com o Uruguai (Luanda: Nzila, 2004), marcando já a índole comparativa e africanista da sua reflexão. Estudou em França, no
Senegal, na África do Sul e no Brasil, viveu nesses países e em Portugal
também, onde ainda exerce jornalismo (à distância) e pesquisou sobre países do
hemisfério sul, principalmente em África e na América do Sul. A sua principal
área de pesquisa é a económica, mas hoje percebemos ainda (por enquanto) que as
áreas científicas não são estanques e, portanto, ele se debruça também sobre
questões sociais, além de escrever romances e perceber, assim, os mecanismos
literários em sua articulação com a realidade histórica, pessoal e social. O
campo de incidência é o continente africano, principalmente ao sul do Saara.
Para ler este livro convém ter presente o
percurso do autor. Ele não se dirige a este ou aquele público específico, muito
menos a claques. Ele situa-se numa plataforma universal ubicada em África e,
portanto, se dirige para todos, mostra conhecer a receção e a situação de
vários países e dialoga com intelectuais e leitores de vários países.
O subtítulo do livro é “livre das
imposturas identitárias” e a principal impostura identitária é a do racismo. Nota-se frequentemente uma generalização de um caso específico
para a definição de racismo usada em clichês, polémicas, manifestos,
textos de propaganda. Essa prática transforma um dos exemplos históricos em
base única para a definição geral, ou seja, reduz a definição geral a um dos
casos que a ilustram. Esse pressuposto é a base geral para a legitimação do
negacionismo do racismo e suprematismo 'negro'. A resposta a esse raciocínio
desleal é muitas vezes uma resposta parecida, na medida em que também se foca
nos casos específicos. O presente livro tem a vantagem de jogar com os casos
específicos comparando-os, contrastando-os e, sobretudo, confrontando-os com
realidades gerais (humanas) ou globais (que surgem em todo o globo). É bom
exemplo disso o resumido historial da negritude feito no livro (pp. 32-35),
saltando-se daí para Appiah e Mbembe, Obama e Richard T. Ford. Fá-lo com
agilidade mas não levianamente, colocando sempre os pontos nos iis.
África
no mundo, apesar da incidência especial no continente-berço, é uma
análise da atualidade global que nos traz exemplos de todos os continentes e
confronta-os, sobretudo, do hemisfério sul africano e americano. Quando o
jornalista nos desmonta as armadilhas, os discursos de separação, os mecanismos
de disfarce (títulos de algumas secções do livro), ele mostra que eles têm
paralelo e meridiano em todo o planeta. Assim, por exemplo, fala da xenofobia
devida ao aumento da imigração sem esquecer o caso sul-africano, quando habitualmente
pensamos na xenofobia europeia ou norte-americana apenas. A xenofobia
sul-africana tem sido objeto de crítica por parte de outros intelectuais
africanos, entre eles se destacando Achille Mbembe. Uma das artimanhas que o
autor insiste em desmontar, com toda a razão, é a de se manter numa zona de
conforto – a dos implícito inquestionáveis – certos países, regimes, sistemas e
definições étnicas. Os contrastes e semelhanças encontrados dentro de cada
grupo (contrastes) e entre vários grupos (semelhanças) desdizem, precisamente,
a redução dos problemas à localização no mapa identitário ou mesmo físico,
escondendo-se que os mesmos problemas existem e existiram em espaços e tempos
contraditórios. É o caso, também, das ameaças à democracia.
Uma das ameaças à democracia vem da criminalidade galopante. As eleições brasileiras de 2018 foram claro exemplo disso,
de como a criminalidade serviu de motivo para legitimar uma aspiração
ditatorial. Podia se falar também de Angola, país onde, em 1992, o aumento da
criminalidade (alguns disseram que provocado artificialmente) legitimou a
criação de uma força policial especial que distorcia os acordos alcançados
entre os partidos beligerantes, pois integrava na prática apenas policiais do
lado governamental. O combate à criminalidade em Luanda, nesse tempo, serviu
para que essas forças especiais (e outras) fossem reprimindo aos poucos a
liberdade que se viveu muito brevemente, inibindo a deslocação para certos
locais, controlando essas deslocações através de pontos de controlo que serviam
para outras arbitrariedades e até para ‘pentear’ (sacar dinheiro) os cidadãos
motorizados. Um contraexemplo vem do Brasil do século XIX e envolve um angolano
(segundo a jurisdição angolana de hoje, ele seria cidadão angolano caso o país
estivesse independente). O que relaciona Eusébio de Queirós com Angola não é só
o nascimento em Luanda, como por vezes se tenta fazer crer e o caso vem a
propósito para desmontarmos uma armadilha mais.
Ele não nasceu lá porque o pai era lá juiz
e o pai não nasceu lá porque o pai dele foi lá juiz. Assim, contudo,
apresentaram a sua relação com Angola já mais do que uma vez. Olhemos a
história com detalhe. Domingos Plácido da Silva foi para Angola como degredado
político e foi lá juiz. Mas o importante é que se casou com uma senhora de uma
das mais antigas famílias da Luanda colonial, uma família que se formou nos
meados do séc. XVII e que, pela parte exógena, vinha dos Açores e da região do
Porto e, pela componente local, era de Luanda. Essa família mista residiu
sempre em Luanda (esporadicamente em Benguela, em razão de cargos) e gerou
também o primeiro poeta angolano a publicar um livro, José da Silva Maia
Ferreira, cuja mãe era familiar muito próxima de Eusébio de Queirós, por duas
vias ou dois ramos (em modo simples: eram primos por consanguinidade e por
afinidade). Essa família incluía militares e comerciantes (em geral andavam juntas
as duas ocupações), juízes, padres, altos funcionários públicos. O casamento de
Domingos Plácido da Silva insere o seu filho, Eusébio de Queirós Coutinho da
Silva, numa rede familiar angolense típica, mantida aliás na linha autonomista
no século XIX e, mais tarde, apoiando a luta pela independência (por exemplo a
partir de um descendente residente em Paris). É dessa família, cujo ramo Queirós
Coutinho sai para o Brasil em 1815, que vem o ministro conservador autor da
famosa ‘Lei da Princesa Isabel’. Reduzi-la à ida para Angola, como juízes, do
pai e do avô do ministro é deformar a sua verdadeira face, bem mais complexa e
diversificada.
Muitas vezes, em complemento, se procura
diminuir a importância da rápida progressão do saquarema luandense às relações
sociais do pai. Sem dúvida que isso contribuiu, como de resto era o comum
naquela sociedade (e ainda hoje é muito comum). Porém, não se menciona que ele,
tendo feito parte da primeira turma dos Estudos Jurídicos de Olinda, foi o
primeiro a terminar o Curso, com média muito alta e rasgados elogios. A sua
bibliografia de estudante acabou sendo mencionada, parcialmente, nas páginas do
Diário de Pernambuco, através de anúncios e demonstra que não tínhamos
aí um filhinho de papai, mas um jovem seriamente interessado na
profissão e na discussão político-jurídica do seu tempo. Também as relações
sociais do pai terão contribuído para a precoce nomeação como Juiz de Direito
Chefe de Polícia do Rio de Janeiro, mas isso não diminui em nada a sua atuação,
decisiva e brilhante, de que deu conta em relatório que me fez trazer aqui o
seu exemplo. É que ele conseguiu reduzir a criminalidade no Rio sem recorrer a
muita repressão (que reforçou no que diz respeito a vagabundos e mendicantes),
antes atuando socialmente (pela integração de marginais no corpo da polícia,
sob orientação e controlo rigorosos), incidindo sobre estrangeiros também,
melhorando a segurança e condições das cadeias e agilizando os processos e
julgamentos. Assim nos mostrou, querendo ou sem querer, que é possível combater
a criminalidade sem apelar ao recurso excessivo da força, que muitas vezes
experimenta ambições ditatoriais. Ora, é disso mesmo que fala Jonuel Gonçalves,
outro angolano com origens europeias. A criminalidade não justifica as ditaduras,
a repressão, os excessos policiais.
As ondas relativistas das últimas
décadas apropriam-se de tudo: conceitos, teorias, palavras-chave (ou
palavras-chaves), campos de estudo, áreas disciplinares nas universidades.
Aplicam o mesmo discurso a tudo, recolhendo alguma frase dos textos comentados
como ‘prova’ do que dizem, deitam tudo ao chão numa política de terra queimada,
não chegam a ler ou comentar obras do princípio ao fim (no geral),
exterminadores implacáveis de todo o resquício de mal com uma prática de
grandes aspiradores de lixos residuais. E nada fica vivo no terreno. O próprio
exterminador evola-se (ou sobe aos céus que desmontou), quando muito escutando
ainda aquela musiquinha chamada enola gay. De sinal contrário, Jonuel
Gonçalves tem uma proposta construtiva: ao mesmo tempo em que desmonta clichês e
imposturas, propõe valores e estratégias de desenvolvimento. Não propõe valores no vazio, sobre a terra
queimada. Procura valores humanos, mostrando
como no terreno eles podem ser operativos.
A defesa da liberdade contra o
autoritarismo atravessa o livro todo e vai desmontando falsas dicotomias,
usadas por relativistas. Ele baseia-se em dicotomias integradoras visando
eliminar essas falsas dicotomias. Por exemplo “estalinista e salazarista”
(falsa dicotomia, pois são o mesmo – regimes autoritários) a que se opõem
regimes onde as pessoas são livres (a verdadeira dicotomia: liberdade ou
autoritarismo). A verdadeira dicotomia remete, novamente, ao universal:
liberdade-opressão, por ex., com citação de um título de Amartya Sen (O
desenvolvimento como liberdade).
Várias passagens nos recordam que a
legitimação das ditaduras e dos populismos, especialmente em África e no
‘terceiro mundo’, está justamente no uso das imposturas identitárias e das
falsas dicotomias (por exemplo rácicas, étnicas – sendo sugestivo o caso
venezuelano, que não vem referido no livro, pois não cabe tudo em 114 páginas).
O autor contrapõe aos autoritarismos, sejam vermelhos ou negros, a liberdade
como valor universal, a democracia como proposta política exequível em todo o
mundo e necessária ao desenvolvimento económico e social sustentável.
A liberdade como valor universal é muitas
vezes combatida alegando-se que esse conceito (nomeado por uma palavra
etimologicamente significativa), como também democracia, não está de
acordo com os ‘nossos valores’. Isso depende de como olhamos para várias
tradições, nas quais, a par da autoridade suprema e definitiva do chefe,
encontramos instituições como a da palabre ou a da maka, situações
em que as pessoas argumentam livremente (antes da tomada de decisão do chefe).
Mas o autor não perde tempo discutindo cada particularidade, ele avança com o
argumento decisivo: também nos atuais países democráticos a democracia não estava
de acordo ‘com as nossas tradições’, absolutistas como se sabe.
Da
mesma forma ele desmonta as tentativas de impugnar a conotação entre democracia
e desenvolvimento. Tem havido autores que procuram impugnar essa conotação, geralmente
obliterando circunstâncias histórico-sociais que desvirtuavam o começo de uma
democracia, como sucedeu na Rússia depois de Gorbachev. Porém, as relações
entre liberdades e desenvolvimento são patentes em todos os continentes e,
simetricamente, as relações entre regimes autoritários e falta de
desenvolvimento. Por vezes avança-se com o exemplo chinês, ou o de Myanmar, ou
o de Cingapura, ou o da Indonésia, que no entanto se desenvolveram com liberdade
económica e respeito pela propriedade privada (mais ameaçado, esse respeito, só na China).
Tirando o microexemplo de Singapura, cuja ‘solução’ menos democrática se
fundamentou em consensos sociais e no reconhecimento da existência e dos
direitos de vários grupos ‘étnicos’, em todos os outros é muito evidente que o
chamado desenvolvimento se alicerçou nos investimentos estatais (caso da
China), na importância dos negócios das Forças Armadas que dominam o Estado e
formam conglomerados empresariais (caso de Myanmar sobretudo) e num misto disso
com generalizadas liberdades (económica, religiosa, associativa), como na
Indonésia, que não foi sempre uma ditadura e não é nenhum exemplo de
desenvolvimento.
Em todos esses casos o crescimento económico não foi
acompanhado por um crescimento salarial e do bem-estar das populações. As
assimetrias entre ricos (ou bem instalados, chamem-lhes o que preferirem) e
pobres aumentaram. A saúde ambiental piorou assustadoramente. Portanto: não se
deu desenvolvimento, o que se deu foi crescimento de negócios, apadrinhados via
Estado e de contornos escusos ou de financiamento forçado pelo artifício dos
investimentos estatais. Há uma aparência de desenvolvimento, alicerçada na
liberdade económica, mas, acabando-se o papel do Estado ou das Forças Armadas e
da corrupção, nota-se que o desenvolvimento era mantido artificialmente e
beneficiava uma escassa percentagem da população. Não se pode chamar a isso
desenvolvimento. O caso da Rússia é, aliás, exemplar: a sua situação económica,
num ambiente de negócios controlado pelo Estado e por uma oligarquia apoiada pelo
Estado, é frágil, apesar das anexações e dos contratos abusivos em que países
ou pseudo-países importam da Rússia a preços muito acima do mercado ou no nível
mais alto do mercado (viu-se, em alguns países, no caso das vacinas anti-Covid,
em que o preço altíssimo não foi devido a uma eficácia garantida superior à das
outras vacinas – e Angola entra como exemplo recente).
Jonuel Gonçalves usa outras referências,
mas não se fica por aí. Como economista que é, especifica, principalmente para
o caso africano, estratégias político-económicas concretas: “a superação do
extrativismo e a implementação de cadeias agroalimentares” (p. 112 e última),
proposta que pressupõe o reforço ou a recuperação da saúde ambiental. A
aplicação de tais estratégias pressupõe mecanismos de controlo social (sobre a
ação governamental ou simplesmente empresarial) que se referenciam pelos
conceitos de liberdade e democracia (como por exemplo: o direito à greve, a
independência do poder judicial, a isenção das policias e das forças armadas,
uma imprensa inteiramente livre, eleições realmente representativas).
As desmontagens e as propostas não se fazem sem referências teóricas. Acompanha-se – com posturas próprias – de
autores com os quais discute de igual para igual (embora num ensaio curto, despretensioso),
Achille Mbembe, Stanislas Adotevi, Amartya Sen, Richard T. Ford e outros(as).
Também não o faz sem dados estatísticos e números
significativos, recolhidos em fontes fiáveis, ou que permitem deduzir uma
probabilidade confiável (e mesmo por isso falham dados africanos, relativos a
países onde não conseguimos obter estatísticas sérias, ou quaisquer
estatísticas). É com tal armamento que se propõe “debater vias de pensamento e
ação para África se inserir no mundo sem subalternidades.” (p. 11) Porque um
dos objetivos da desmontagem das imposturas identitárias é, precisamente, o de
colocar os africanos em diálogo direto, sem contemplações, com o resto do mundo
e consigo próprios, com a sua realidade atual (há outra?).
As conclusões a que chega e os raciocínios
com que opera servem, pela preocupação com uma validade universal, outros
campos culturais em várias semiosferas. A constatação geral de que “todas as
civilizações foram produzidas por adição de parcelas” é um dos exemplos,
devendo-se a isso (também) o desenvolvimento respetivo, por “suas capacidades
de absorção e integração desses aportes.” (p. 19)
Se olharmos para as literaturas observamos o mesmo. Em primeiro lugar, que nunca nenhuma surgiu
sozinha. Derivaram umas de outras e receberam tributos umas das outras – mesmo
quando vinham de espaços políticos opostos. Em segundo lugar, que o seu
desenvolvimento e a sua globalização (refiro-me mesmo à entrada em um circuito
global dos mercados do livro) se fazem pela “absorção e integração desses
aportes.” Foi, continua a ser, um dos garantes da globalização das novas
literaturas africanas a diáspora intelectual e académica africana, com sua
correspondente (e simétrica) absorção de ‘modos de fazer’ e de ler em
circulação nos mercados principais ou canónicos (permita-se a extensão do
conceito). O seu sucesso deriva de juntarem a tais saberes e fazeres uma
africanidade, ou seja, uma originalidade que surpreende a sonolência das
expetativas esgotadas, ou seja, dos cânones consagrados.
Ainda relacionando com as literaturas, as
propostas do economista e político Jonuel Gonçalves, relativas à circulação de
pessoas (e principalmente na CPLP), devem ser acompanhadas por idênticas (e
adaptadas) propostas para a circulação dos livros, dos escritores e dos
leitores. Ela ficou facilitada pelo funcionamento de uma rede mundial, da
internet, mas não deixa de ser necessária a vivência no país do outro sem
pesadelos burocráticos e sem corrupções para concessão de vistos e transporte
de produtos culturais.
Também neste campo, é de notar como
funcionam as fórmulas identitaristas. Elas reconduzem-nos ao papel passivo da
literatura militante que, em vez de explorar na linguagem novas conexões, experimentar
pelas intrigas novas hipóteses de leitura político-social, servem o fim de
propaganda previamente estabelecido pela clique ou pela claque.
Essa literatura de clique-claque nos afasta da percepção do modo de
fazer e de ler típico de várias comunidades e, no geral, da semiosfera banto. A
crioulização da semiosfera banto com a literatura globalizada produziu efeitos
novos, ou renovados, avivando a forma de compor, a agilidade na metaforização
(tradicionalmente codificada e conservadora), e trazendo-nos assim uma prática
literária que, também ela, põe África no mundo sem subalternidades. O mesmo
sucede com a música há muitas décadas. Ao contrário, dentro e fora dos países
da África negra, a literatura militante dos identitários repôs uma poética internacionalista,
meramente discursiva, panfletária, que vemos repetir-se em todo o mundo com a
única mudança de motivos pouco mais que geográficos para dar a ‘cor local’.