5.6.24

Natureza, pessoa, coesão social

Um dos problemas da teoria e da prática políticas - um problema a questionar em liberdade - é o do lugar das inclinações, valores e desejos pessoais no quadro político e da justiça pública. 

A dicotomia que se desenvolveu nos últimos duzentos a trezentos anos extrema-se entre a negação, ou afirmação, do desejo e do pessoal como valores políticos acima de qualquer suspeita, valendo ou contradizendo princípios abstratos, de vocação coletiva ou coletivista, aos quais o pessoal, individual e voluntário se deveria sujeitar. 

Parece-me que de uma forma dupla a dicotomia se relaciona com as tradições. 

As tradições tendem a subsumir o pessoal na coerção social, no consenso quase familiar, ao qual os indivíduos se devem submeter (aparentemente concordando) para que não se gere instabilidade, que ponha em causa uma ordem costumeira. No entanto, para que uma ordem democrática e livre se torne tradicional, ou costumeira, é preciso quebrar o consenso anterior, porque as democracias nasceram reagindo a formas de coerção social em que, apesar de poder haver equilíbrios internos, havia ditames antidemocráticos vigorando no geral das atitudes institucionais e de chefia, estabelecendo por autoridade 'o que não se punha em causa'. 

Ora, a instabilidade e a contradição (a falta de consenso) fazem parte do jogo político em liberdade. Uma vez usadas, abrem para um regime onde já não será possível regressar a consensos e equilíbrios entre autoritarismo e liberalidade, sem contradição dos fundamentos (sempre mínimos) das próprias democracias. Por isso para os ditadores as democracias são intervalos e as suas ditaduras eternas. 

Houve tradições (ou períodos) tendencialmente abertas que exerceram, do mesmo passo, alguma coerção social (no sentido de um consenso) e uma gradual, quase experimental reformulação de costumes em face das discordâncias, sem deixar de respeitar os valores e os interesses por que se guiava aquela sociedade. Em reinados historicamente determináveis (em todo o mundo) essa marca se nota por instituições e práticas intervalares, em que momentaneamente as pessoas exercem a palavra sem coerção nem castigo posterior (por exemplo alguns julgamentos tradicionais em sobados da África negra). Após muitas voltas e algumas revoluções, é isso que hoje determina, penso, os conservadores tradicionalistas. em repúblicas democráticas (definição mínima: aquelas em que o voto popular deve ser respeitado e seguido no rumo governativo). Isso traz alguma margem de manobra à personalidade no seio do grupo ou da nação, por isso tais conservadores se tornaram personalistas ou defensores da individuação, da liberdade de opinião, valores que passaram a considerar-se... tradicionais. 

O conjunto de valores pode ser, assim, modificado por aspetos, reformado por partes, sem deixar de colocar a preponderância do consenso coletivo sobre a pessoa. Mas esse consenso não tem uma raiz democrática e, muito menos, libertária, ou de liberdade. O consenso consegue-se, em pequenas comunidades, através da coerção social sobre o indivíduo. Essa coerção não pode ser posta em causa: quando alguém a questiona é marginalizado. Um dos limites mais ferozes das soluções tradicionais mora aí, porque elas concebem o todo, o coletivo, como composição de pequenas comunidades organizadas por interesses locais ou profissionais. Isso é bom na medida em que evite que o jogo partidário corrompa o jogo de interesses corporativo, que é o jogo autêntico na vida quotidiana. Essa organização política parece-me saudável, mas apenas quando limitada pelo voto pessoal, individual, irrestrito, e protegida por legislação que impeça derivas autoritárias, o que podemos exemplificar na liberdade sindical.

Se o atrativo das tradições pode estar na tentativa de harmonização da novidade com a memória, do pessoal com o social, o limite que elas impõem afeta uma relação de igualdade valorativa entre o predomínio político da pessoas e o predomínio político da coletividade. 

O equilíbrio possível me parece vir, não do consenso, mas da garantia legal do jogo dinâmico e direto entre 'forças sociais' e da contradição dessas 'forças sociais' pela expressão e realização mais livres de cada um. Frequentemente, porém, o choque entre 'forças sociais' conduz ao domínio de uma sobre as outras, ao passo que o choque entre personalidades ativas e livres conduz à compreensão social da necessidade de diálogo, de com-versa. Por isso, quando o potencial ditador quer vencer a democracia, cria um grupo, instila-lhe valores que legitimam o seu poder e usa-o para esmagar as outras 'forças sociais'. Quer isso dizer que a legislação democrática e livre tem de - sendo nisso imperativa - resguardar o cidadão, melhor, a pessoa, melhor, o direito à insubordinação e à afirmação das pessoas, individualmente. 

O valor político da pessoa, das divergências, contradições, instabilidades, desde que permita operar-se por consensos mínimos em tempo de crise extrema (portanto provisoriamente), é o valor acordado à natureza humana. O valor ideológico do coletivo contraria sempre, seja por que lado for, a natureza humana e um dos trunfos do liberalismo, ou do capitalismo, é justamente a sua aposta em não chocar a natureza humana; se possível usam-na, manipulam-na, mas sem programar qualquer espécie de governação que implique neutralizar os seus efeitos pela força. 

Face a isto, fácil é de concluirmos que a maioria dos 'grupos de pressão', dos 'ativismos', das 'causas', atuam nas democracias em sentido contrário ao da liberdade. É, porém, necessário que existam, sendo perigoso que se consigam impor. É necessário que existam porque dinamizam contradições; é perigoso imporem-se porque tendem a anulá-las pelo esmagamento dos 'adversários' - ou, se quisermos, usando mecanismos de coerção, de coesão, de consenso para fins opostos aos que permitiram a sua emergência numa democracia. 

Quando uma democracia não percebe isto, parece-me que entra em processo de colapso. Parece-me, também, que os ditadores o sabem e que o grande problema da filosofia política hoje se centra neste debate. 


31.3.24

Sobre universalismo hoje


A denúncia e rejeição da chamada cultura woke (na continuação da influência anglófona - e sobretudo dos EUA - sobre a cultura mundial adotou-se mais um termo típico dessa semiosfera) alarga-se e cada vez há menos pessoas amedrontadas, que se atrevem a desmontá-la publicamente. É de saudar esse movimento de retorno à lucidez e à liberdade de pensamento. 


Vejo, porém, que, muitas vezes, a denúncia da cultura woke - uma cultura de terra queimada - coloca no vazio que ela deixou o mesmo que havia antes. Isso é mau sinal. Porque o contributo válido que os movimentos relativistas (e não os identitários) nos deixam é o que nos reforça os descondicionamentos que tornam mais universal, apurada e humana a reflexão. 


Parece, portanto, necessário criar alertas para os malefícios do retorno a visões estreitas anteriores. Duas observações, pelo menos: 

1ª - a cultura identitarista, que o relativismo promoveu ao combater o universalismo, é comum a movimentos de esquerda vulgar, imbecil sem dúvida, impreparada, que substitui o raciocínio pelo imediatismo ativista. Mas esses mesmos defeitos são comuns à direita chamada 'populista' (como se não houvesse esquerda populista). Não há diferenças políticas significativas entre os identitários do 3º mundo e os identitários europeus, entre a extrema direita europeia atual, ou a direita populista europeia, e os defensores do fundamentalismo banto, islâmico, árabe, étnico e vários etc's. E se alguém entender que haja, deixe comentário aqui, posso explicar em que medida e porque não há. 

2ª - o relativismo e o identitarismo, ou genericamente o culto das especificidades, ignora que somos todos seres humanos e isso tem implicações políticas também, não só epistemológicas. O universalismo humanista anterior estava um tanto esclerosado e beneficiava mais da retórica racionalista que das experiências, hipóteses e investigações científicas contínuas. 

É preciso refundar o tal universalismo. E em que nos podemos basear? Em duas ou três verificações, pelo menos: 

1ª - a mais antiga: todos os seres humanos apresentam traços culturais comuns. Por exemplo questões comuns (as respostas específicas são respostas a questões comuns), uma delas, a mais antiga talvez, Deus ou a religião. Mas outras: a questão da liberdade, a do caminho a seguir, a do poder. Outras em que nunca pensamos e nos determinam: para que serve a sequência dos dias e das noites? Como viver melhor? Para que serve contrastar e verificar semelhanças? As respostas específicas não variam tanto de etnia para etnia, ou de sexo para sexo, ou de país para país, quanto de grupos e pessoas dentro de cada comunidade e entre agrupamentos humanos em diálogo. Mesmo onde não há liberdade, mesmo onde uma opinião domina e tenta abafar as outras, as outras existem, ainda que só em pensamento, ou em rumor, ou falando baixinho em círculos restritos, ou secretos, como sucedia nos tempos da Inquisição em parte da Europa. 


Para reencontrarmos a universalidade humana há utensílios indispensáveis e seguros. A ciência, com destaque para disciplinas como a neurobiologia, a genética, a antropologia comparativa e evolutiva, a informática, as ciências cognitivas. 

Para que um novo universalismo nos devolva uma perceção fundamentada do comum e do específico é preciso, também, que a política de apoio à cultura e, sobretudo, à ciência e à tecnologia, venha estimular as ciências que nos devolvem à humanidade concreta, pesquisável, às ciências que nos estudam pelo que temos biologicamente em comum, pelo que também temos em comum e de diferente, biologicamente, com os animais, e que deteta as diferenças a levar em conta - por exemplo pela medicina, pela farmacêutica, pela componente de extensão nas ciências aplicadas.


É todo um programa político e também de política científica a erigir e a erigir com sentido de liberdade. Numa liberdade alicerçada ainda, no que diz respeito às políticas e às ciências, sobre o comparatismo salutar, inter e transdisciplinar, inter e transnacional, ou seja, orientado por essas ciências acima nomeadas. É preciso recuperar as comparações, pois o relativismo destruiu até o comparatismo, usando-o para tornar arbitrárias todas e quaisquer hipóteses que não fossem de contestação e de afirmação - meras - de poderes exclusivamente partidários.


Esta é a principal tarefa política e social do nosso tempo. Há uma segunda, mas estritamente pessoal, única para cada um de nós: a recuperação disso mesmo, da vida pessoal, intransmissível, eventualmente e em mais do que um sentido: espiritual, daquela espiritualidade que integra ou inclui o ateísmo. 


15.3.24

Crime, emigração e retórica de avestruz

 

Na edição de hoje do Le Figaro Magazine transcreve-se uma entrevista muito pertinente com Charles Sapin sobre os nacionalismos europeus atuais, melhor dito, partidos xenófobos e de direita radical. A entrevista se justifica pela publicação recente de

.

Há dois destaques: 
1. Assustar os eleitores com os perigos do fascismo, do nazismo, da extrema-direita do século XX não resulta mais, até porque mesmo os que inicialmente foram neonazis ou neofascistas se afastaram das origens para se inserirem na atualidade; 
2. A forte subida eleitoral dos novos grupos à direita, sejam eles populistas ou não, se deve ao facto de falarem diretamente e sem pruridos na situação migratória, problema com que estão muito à vontade porque, não tendo estado no poder, não tiveram qualquer responsabilidade nela, basta-lhes apontarem o dedo. 

A situação migratória, relembro, varia de país para país. Na Suécia, ou na França, ou na Itália, tem contornos e consequências específicos, além dos comuns. Em Portugal o governo socialista e o seu partido, oportunamente, fizeram sair relatórios que demonstram que os emigrantes, ao contrário do que diz André Ventura, não são problema para a Segurança Social, dado o volume das suas contribuições. O chefe do partido Chega moderou-se e não foi só para conquistar moderados, ele simplesmente não tem elasticidade retórica nem cognitiva. Podia ler, ou mandar ler, em pormenor o relatório para lhe apontar eventuais lacunas; não o fez. Podia chamar a atenção, mas com dados estatísticos, para a criminalidade, mas só o faz 'por alto', ou 'de leve', atirando 'bocas' ao mercado dos votos. A credibilidade destes partidos cairá por si própria se forem mais lacunares ainda que os outros. O problema é que muitas vezes, como no caso do Brasil e dos EUA, só quando estão no poder se percebe que não têm soluções e são meros intrumentos de gangues internas de empresários sugadores dos dinheiros públicos e de gangues externas integradas na 'Nova Ordem Mundial' - que é, na prática, a retoma do pior que havia nas antigas ordens locais.

Alguns países procuram repetidamente ocultar nos noticiários a origem de criminosos cujos crimes ganharam relevo. É a continuação da política centrista de meter a cabeça debaixo do chão e fingir que essas estatísticas, e a própria migração para dentro da União Europeia, não constituem qualquer problema. São, na verdade, invasões aparentemente pacíficas, colocando-se os europeus perante o facto consumado de se estar ali à porta, 'ao Deus dará'. Raramente se responsabiliza o verdadeiro causador: arbitrariedade, má governação, ditadura, exploração, nos países de origem. 

É mesmo por esse tipo de estratégia que o centro político se esvazia, beneficiando os partidos tendencialmente autoritários de direita (visto que o autoritarismo de esquerda está hoje sem crédito nem futuro visível, além de, pela sua falta de elasticidade, se terem ressequido, limitando-se a repetir princípios e valores envelhecidos). 

É necessário que um governo traga para a rua, sem pruridos nem lacunas, um relatório bem fundamentado que nos esclareça sobre a relação entre aumento da criminalidade por tipos, categorias, e o aumento das correntes migratórias, ilegais e legais. É preciso que, depois disso, caso vejamos todos razão para tal, se anunciem medidas concretas, a médio e curto prazo, para diminuir o efeito negativo, medidas que não se limitam a mandar as pessoas embora no primeiro transporte que apareça - até porque elas voltam, ou similares. No Brasil, por exemplo, Bolsonaro e seus entusiastas diziam resolver a criminalidade mandando prender: é bandido prende (e, se puder, mata). Não resolveram nada e assistiram até à formação de filas para... entrar na prisão, com criminosos algemados nos seus carros (ou em outros) à espera da entrada no novo hotel que os protege de serem mortos por rivais. Não criou novos presídios, não resolveu a criminalidade antecipando-a pela criação de programas de reinserção, de promoção de potenciais criminosos (principalmente jovens) a funções que os afastem do crime e lhes garantam salário digno, residência longe de zonas de contaminação mais fácil, etc. Como Trump nos EUA também não resolveu qualquer problema com os emigrantes ilegais, apenas construiu um pedaço de muro inútil e inconsequente e vetou entrada de estrangeiros indiscriminada que também não evitou atos terroristas e criminosos dentro do país, nem diminuiu o número de mortos à bala.

Diz a última ciência que o avestruz, afinal, não mete a cabeça no chão por medo. Mas o avestruz político é um menino mimado (muitas vezes pelo estado social, outras pelos papás) que mete a cabeça no chão sempre que algum problema o incomode mais. O sistema democrático não se resolve por inércia.


24.1.24

Como se afundam as democracias

 ... por falta de vigilância, de eficácia e de cidadania.

Leia-se este trecho, destacado no artigo de opinião de Dantas Rodrigues no jornal português Observador:

É uma tragédia quem nos julga e nada cumpre, e nem é sequer obrigado a cumprir. Esquecendo-se que os prazos processuais existem para proteger as partes intervenientes e o processo não ser infindável. 

Continuamos lendo estas afirmações, porque a situação se arrasta governo a governo, eleição a eleição. 

Vem um demagogo e diz: estão a ver, 'eles' (e aponta o dedo ao vago) não resolvem nada. Claro, muitas pessoas vão votar no demagogo e nem se perguntam, sequer, quem ele foi até esse momento. 'Eles', é vago, mas todos conhecemos: são todos os que detestamos na política.


 

23.1.24

Portugal: exemplo de jornalismo que não vale a pena voltar

Entre polémicas, despedimentos, negócios mais ou menos sigilosos e um congresso, jornalistas do Diário de Notícias fizeram um caderno chamado "DN em luta. 159 anos na vida de Portugal". Como também se vê por esse caderno, e por artigo do diretor José Júdice (rejeitado pelo Conselho de Redação em outubro), não é a primeira vez que o jornal se encontra em 'maus lençóis', nem os jornalistas com salários em atraso. 

A recorrência do facto não justifica o atraso nos salários, contra o qual (e os despedimentos) os jornalistas reagem com toda a razão. Torna-se ainda mais pertinente essa luta quanto, como dizem no seu comunicado de 19.1.2024, o 

presidente da Comissão Executiva, José Paulo Fafe, que assumidamente se recusou a pagar salários por estar em litígio, não com os trabalhadores do grupo, mas sim com outro acionista e com a ERC.

O que me traz aqui é o caderno histórico referido e suas imprecisões, ou lacunas, algumas delas sintomáticas. As vítimas do processo - os subscritores do comunicado - tinham vantagem em mencionar, por exemplo, os ganhos com publicidade na edição on-line, nas várias modalidades. 

Mas, entre outras, há uma grave omissão. No historial, refere-se assim o ano de 

1975 - José Saramago, mais tarde prémio Nobel da Literatura, integra a direção do DN, como diretor-adjunto de Luís de Barros, na época conturbada após a revolução do 25 de abril de 1974. Essa direção seria afastada após os acontecimentos político-militares de 25 de Novembro de 1975 e o Diário de Notícias esteve suspenso durante um mês.

Estranho, quando se trata de despedimentos, não referirem os desse ano. Em outro historial, este centrado no período em causa, Pedro Marques Gomes diz 

O período em que o jornal é dirigido pela dupla Barros/Saramago será, assim, marcado por inúmeras polémicas e manifestações públicas de discordância em relação ao seu conteúdo noticioso, sendo um dos casos mais mediáticos o do afastamento de 24 jornalistas na sequência da divulgação de um documento, no qual estes questionam a orientação do DN.

Como também se menciona aí, depois do 25 de novembro, foram despedidos mais 14 jornalistas, comprometidos com a quebra de imparcialidade e com a disciplina partidária impostas ao jornal por uma parte da redação e pela direção gonçalvista. E como também se vê pelo artigo do novo diretor do DN, José Júdice, as soluções apontadas passavam por subvenções estatais a jornais estatais, soluções nas quais a maioria do eleitorado (logo, dos contribuintes), como se viu nas eleições, não se revia nem se reviu.

Também nesses anos a seguir ao 25 de abril em Portugal, as polémicas em torno do jornalismo parcial, partidário, controlado no geral por células e jornalistas afetos ao PCP, eram tão vivas quanto a própria política partidária. Pesquisas estatísticas foram feitas, não só relativas ao número de menções a políticos afetos ao PCP e ao PREC e à oposição, mas também relativas ao tipo de menção (negativa ou positiva) e são claros os resultados: a esmagadora maioria delas era positiva e relativa aos protagonistas do PREC e do PCP; uma absoluta minoria era relativa aos da oposição, da qual apenas se destacava Mário Soares (o último que faltava abater) e na quase totalidade essas eram negativas. 

Há perguntas que imediatamente nos ocorrem, pese embora a justiça da luta pelo pagamento de salários e contra mais razias na redação.

1) Ocultar esses despedimentos e a razão de ser deles, em que ajuda à credibilidade dos jornalistas que subscrevem o historial? 

2) Ocultar os ganhos e as mudanças e a capacidade de adaptação da redação aos novos meios de comunicação (genericamente on-line, em linha), ajuda os mesmos jornalistas? 

3) Em que medida a direção nomeada pelos proprietários de um jornal privado deve ser rejeitada pelo Conselho de Redação e que peso isso deve ter na decisão dos administradores? Será justo que o Conselho de Redação pretenda vetar a direção indicada por quem investe o dinheiro ali? Uma comissão de trabalhadores é que aprova a direção de uma empresa privada nos outros negócios?

Caso similar aconteceu no Le Monde, há muitos anos. Acabaram chegando a um consenso e o Le Monde mantém-se um jornal respeitável. Faço votos para que estes jornalistas, pela sua parte, superem os resquícios de militância policial que ainda os leva a esconder informação. 

Dito o que, torno a declarar: estou solidário com a greve e a luta contra o desemprego nas redações. Há vários títulos que mostram, em todo o mundo, que a reconversão para o jornalismo atual não implica, obrigatoriamente, despedimentos maciços e estas redações estão já muito reduzidas.


19.12.23

A tal ortodoxia

Apenas um apontamento: quando lemos a expressão "ortodoxia dominante", geralmente ela se refere a uma ortodoxia extinta e quem a usa insere-se numa ortodoxia que vem dominando a cultura euro-americana desde os finais da década de 1970.

Já sabemos: é mais fácil (aparentemente pelo menos) agredir um morto que um vivo. Que o digam Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, ou Melenchon, etc., etc.... e até o Hamas, o Hezbollah, o Irão, as monarquias do Golfo, os Houtis e outros fundamentalistas islâmicos salvaguardados por uma esquerda paradoxalmente marxista, profana, vulgar, igualitária, que se diz ateia e vai cada vez mais aos misticismos do Oriente buscar o que matou na sua terra. Essa mesma esquerda que diz defender a liberdade e a justiça social e defende na prática regimes despóticos dominados por chefes populistas e oligarquias empresariais.


18.12.23

Cessar-fogo Coco Chanel entre Israel e Palestina defendido pela França

 Do Libération de hoje, 18.12.2023: 


Não visitou a Faixa de Gaza nem fez tal pedido ao Hamas e muito menos pediu que libertassem os restantes reféns para cessarem os combates. É a norma: malha-se em Israel e nas democracias, porque ali se pode fazer isso; nos outros países, onde há ditaduras, violências, violações (até 'constitucionais') dos direitos humanos, nenhum dos incomodados com as vítimas em Gaza, ou com migrações clandestinas, nenhum nem nenhuma vão lá falar, claro. 

Fazem lembrar aqueles meninos e meninas que vivem do dinheiro dos pais e passam o tempo todo a falar mal deles, a criticar o seu modo de vida, as suas práticas incorretas etc etc - como é bom viver assim, na cobardia de satisfazer os que nos amedrontam sacrificando os que nos beneficiam. 

E repare-se na demagogia: "cessar-fogo imediato e durável". O paraíso também, se possível, sendo o paraíso talvez uma loja Coco-Chanel muito limpa e bonita em todas as capitais do mundo. Esta gente dos gabinetes nem faz ideia do que seja uma guerra, combates, a necessária relação demoníaca do matar ou morrer numa situação como a das relações entre palestinos e israelitas. Israel, mesmo que o pretendesse, não conseguiria garantir um cessar-fogo "imediato e durável", porque o cessar-fogo seria quebrado pelo outro lado assim que recompusessem os reforços de armamento e reocupassem posições. Mas a senhora ministra está a falar para a imprensa do seu país ...e da Cisjordânia, onde foi depois visitar palestinos expulsos por colonos israelitas (o que me parece importante fazer, mas ela devia ter visitado igualmente as famílias das vítimas do 7 de outubro, não?). Enfim, passará ao Líbano para resolver (imagine-se, com o "importante papel" que a França pode desempenhar) as tensões entre o país do Cedro (um eufemismo, sem dúvida) e Israel. Que boa senhora, tão bem intencionada! A França está realmente muito fraca!