Um dos problemas da teoria e da prática políticas - um problema a questionar em liberdade - é o do lugar das inclinações, valores e desejos pessoais no quadro político e da justiça pública.
A dicotomia que se desenvolveu nos últimos duzentos a trezentos anos extrema-se entre a negação, ou afirmação, do desejo e do pessoal como valores políticos acima de qualquer suspeita, valendo ou contradizendo princípios abstratos, de vocação coletiva ou coletivista, aos quais o pessoal, individual e voluntário se deveria sujeitar.
Parece-me que de uma forma dupla a dicotomia se relaciona com as tradições.
As tradições tendem a subsumir o pessoal na coerção social, no consenso quase familiar, ao qual os indivíduos se devem submeter (aparentemente concordando) para que não se gere instabilidade, que ponha em causa uma ordem costumeira. No entanto, para que uma ordem democrática e livre se torne tradicional, ou costumeira, é preciso quebrar o consenso anterior, porque as democracias nasceram reagindo a formas de coerção social em que, apesar de poder haver equilíbrios internos, havia ditames antidemocráticos vigorando no geral das atitudes institucionais e de chefia, estabelecendo por autoridade 'o que não se punha em causa'.
Ora, a instabilidade e a contradição (a falta de consenso) fazem parte do jogo político em liberdade. Uma vez usadas, abrem para um regime onde já não será possível regressar a consensos e equilíbrios entre autoritarismo e liberalidade, sem contradição dos fundamentos (sempre mínimos) das próprias democracias. Por isso para os ditadores as democracias são intervalos e as suas ditaduras eternas.
Houve tradições (ou períodos) tendencialmente abertas que exerceram, do mesmo passo, alguma coerção social (no sentido de um consenso) e uma gradual, quase experimental reformulação de costumes em face das discordâncias, sem deixar de respeitar os valores e os interesses por que se guiava aquela sociedade. Em reinados historicamente determináveis (em todo o mundo) essa marca se nota por instituições e práticas intervalares, em que momentaneamente as pessoas exercem a palavra sem coerção nem castigo posterior (por exemplo alguns julgamentos tradicionais em sobados da África negra). Após muitas voltas e algumas revoluções, é isso que hoje determina, penso, os conservadores tradicionalistas. em repúblicas democráticas (definição mínima: aquelas em que o voto popular deve ser respeitado e seguido no rumo governativo). Isso traz alguma margem de manobra à personalidade no seio do grupo ou da nação, por isso tais conservadores se tornaram personalistas ou defensores da individuação, da liberdade de opinião, valores que passaram a considerar-se... tradicionais.
O conjunto de valores pode ser, assim, modificado por aspetos, reformado por partes, sem deixar de colocar a preponderância do consenso coletivo sobre a pessoa. Mas esse consenso não tem uma raiz democrática e, muito menos, libertária, ou de liberdade. O consenso consegue-se, em pequenas comunidades, através da coerção social sobre o indivíduo. Essa coerção não pode ser posta em causa: quando alguém a questiona é marginalizado. Um dos limites mais ferozes das soluções tradicionais mora aí, porque elas concebem o todo, o coletivo, como composição de pequenas comunidades organizadas por interesses locais ou profissionais. Isso é bom na medida em que evite que o jogo partidário corrompa o jogo de interesses corporativo, que é o jogo autêntico na vida quotidiana. Essa organização política parece-me saudável, mas apenas quando limitada pelo voto pessoal, individual, irrestrito, e protegida por legislação que impeça derivas autoritárias, o que podemos exemplificar na liberdade sindical.
Se o atrativo das tradições pode estar na tentativa de harmonização da novidade com a memória, do pessoal com o social, o limite que elas impõem afeta uma relação de igualdade valorativa entre o predomínio político da pessoas e o predomínio político da coletividade.
O equilíbrio possível me parece vir, não do consenso, mas da garantia legal do jogo dinâmico e direto entre 'forças sociais' e da contradição dessas 'forças sociais' pela expressão e realização mais livres de cada um. Frequentemente, porém, o choque entre 'forças sociais' conduz ao domínio de uma sobre as outras, ao passo que o choque entre personalidades ativas e livres conduz à compreensão social da necessidade de diálogo, de com-versa. Por isso, quando o potencial ditador quer vencer a democracia, cria um grupo, instila-lhe valores que legitimam o seu poder e usa-o para esmagar as outras 'forças sociais'. Quer isso dizer que a legislação democrática e livre tem de - sendo nisso imperativa - resguardar o cidadão, melhor, a pessoa, melhor, o direito à insubordinação e à afirmação das pessoas, individualmente.
O valor político da pessoa, das divergências, contradições, instabilidades, desde que permita operar-se por consensos mínimos em tempo de crise extrema (portanto provisoriamente), é o valor acordado à natureza humana. O valor ideológico do coletivo contraria sempre, seja por que lado for, a natureza humana e um dos trunfos do liberalismo, ou do capitalismo, é justamente a sua aposta em não chocar a natureza humana; se possível usam-na, manipulam-na, mas sem programar qualquer espécie de governação que implique neutralizar os seus efeitos pela força.
Face a isto, fácil é de concluirmos que a maioria dos 'grupos de pressão', dos 'ativismos', das 'causas', atuam nas democracias em sentido contrário ao da liberdade. É, porém, necessário que existam, sendo perigoso que se consigam impor. É necessário que existam porque dinamizam contradições; é perigoso imporem-se porque tendem a anulá-las pelo esmagamento dos 'adversários' - ou, se quisermos, usando mecanismos de coerção, de coesão, de consenso para fins opostos aos que permitiram a sua emergência numa democracia.
Quando uma democracia não percebe isto, parece-me que entra em processo de colapso. Parece-me, também, que os ditadores o sabem e que o grande problema da filosofia política hoje se centra neste debate.